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EUCLIDES, SUPLICY, SARNEY E O HÉRCULES-QUASÍMODO

Euclides da Cunha, autor de Os Sertões, é, sem dúvida, um gigante da literatura brasileira. Todas as homenagens que lhe são dirigidas são justas. No dia 15 de agosto, fez 100 anos que ele morreu — assassinado pelo amante de sua mulher. O demônio me tenta aqui a especular sobre o fato de que um […]

Por Reinaldo Azevedo Atualizado em 31 jul 2020, 17h01 - Publicado em 24 ago 2009, 20h42

Euclides da Cunha, autor de Os Sertões, é, sem dúvida, um gigante da literatura brasileira. Todas as homenagens que lhe são dirigidas são justas. No dia 15 de agosto, fez 100 anos que ele morreu — assassinado pelo amante de sua mulher. O demônio me tenta aqui a especular sobre o fato de que um de nossos vultos literários tenha sido vítima de um crime passional. Grandeza e tragédia picaresca — se isso é possível — nos contemplam. A tragédia picaresca leva vantagem.

Com a devida vênia, o brasileiro é constantemente chifrado pelos políticos e não dá tanta bola assim. Ao contrário até: pesquisas demonstram que uma boa parcela adoraria dar uma chifrada nas instituições. Há quem realmente não compreenda o que Sarney fez de errado ao empregar a parentaiada por meio de ato secreto. A razão é simples: muitos fariam o mesmo. Ou corneariam o vizinho ou seriam corneados por ele. Adiante.

Euclides foi mesmo um gigante. O republicano radical que foi cobrir como repórter a guerra de Canudos, um movimento de suposta inspiração monarquista, identificou algumas sementes do nosso atraso. Com uma linguagem que transita entre a literatura e a ciência, escreveu um livro brasileiro de apelo universal. Cem anos depois da morte, a traição espreita o espírito de Euclides e sua obra em algumas homenagens que lhe são feitas. Aconteceu assim nesta segunda.

José Sarney, o próprio, resolveu discursar em homenagem ao escritor. Procurava, numa segunda esvaziada, demonstrar a normalidade da Casa. A mensagem era esta: “Sarney já fala de literatura; a crise acabou”. Ou seja: aquele que entrou para a galeria dos autores que tentaram entender as nossas mazelas, em vez de escondê-las, era usado como pretexto para saudar a paz dos cemitérios. Um esculacho.

Eduardo Suplicy era um dos cinco senadores presentes. Resolveu fazer um aparte ao discurso do presidente do Senado e mandou ver.
“Quando Vossa Excelência observou que não cometeu qualquer falta, que não sente culpa de coisa alguma, ora presidente Sarney. Há ocasiões que, se erros cometemos, é importante reconhecermos. Se Vossa Excelência não se deu conta que alguns procedimentos não foram adequados, seria importante ouvir seus companheiros no Senado sobre algumas coisas que muitos de nós não consideramos o mais adequado e gostaríamos de transmitir isso a Vossa Excelência. O reconhecimento dos próprios erros também é importante”.

Irritado, Sarney respondeu: “Vossa Excelência coloca neste gesto um gesto que não é de Vossa Excelência. A não ser que tenha sido tomado por paixão política para que tenha desrespeitado as regras da educação e convivência parlamentar. Eu coloquei todas as acusações feitas à minha presidência do Senado. Se Vossa Excelência tiver alguma a apontar, coloque se é da minha primeira presidência, da segunda. Se naquela época não protestou, qual tomamos nos últimos cinco meses se não corrigir o Senado? Mas não quero arranhar a memória de Euclides da Cunha”.

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E como ver o gesto de Suplicy? O que vocês querem que eu diga? Ele teve outras oportunidades de expressar o seu desagrado, não é? O seu partido livrou a cara de Sarney. Os três “companheiros” do Conselho de Ética votaram contra o recurso que pedia que os atos do presidente do Senado fossem investigados. A determinação partiu de Lula, o que custou a humilhação pública de Mercadante. E é de Sarney que Suplicy vai cobrar uma explicação? Aí, claro, fala também o senso de oportunidade deste impressionante senador, que sabe como poucos cuidar do seu marketing pessoal. Agora, ele sabe muito bem que é inútil qualquer coisa que diga. Está jogando para a torcida.

Coitado de Euclides da Cunha! Vai um tantinho do que ele escreveu. Volto depois:

O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral.

A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário. Falta-lhe a plástica impecável, o desempeno, a estrutura corretíssima das organizações atléticas.

É desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo, reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos. O andar sem firmeza, sem aprumo, quase gingante e sinuoso, aparenta a translação de membros desarticulados. Agrava-o a postura normalmente abatida, num manifestar de displicência que lhe dá um caráter de humildade deprimente. A pé, quando parado, recosta-se invariavelmente ao primeiro umbral ou parede que encontra; a cavalo, se sofreia o animal para trocar duas palavras com um conhecido, cai logo sobre um dos estribos, descansando sobre a espenda da sela. Caminhando, mesmo a passo rápido, não traça trajetória retilínea e firme. Avança celeremente, num bambolear característico, de que parecem ser o traço geométrico os meandros das trilhas sertanejas. E se na marcha estaca pelo motivo mais vulgar, para enrolar um cigarro, bater o isqueiro, ou travar ligeira conversa com um amigo, cai logo – cai é o termo – de cócoras, atravessando largo tempo numa posição de equilíbrio instável, em que todo o seu corpo fica suspenso pelos dedos grandes dos pés, sentado sobre os calcanhares, com uma simplicidade a um tempo ridícula e adorável.

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É o homem permanentemente fatigado.

Reflete a preguiça invencível, a atonia muscular perene, em tudo: na palavra remorada, no gesto contrafeito, no andar desaprumado, na cadência langorosa das modinhas, na tendência constante à imobilidade e à quietude.

Entretanto, toda esta aparência de cansaço ilude.

Nada é mais surpreendedor do que vê-la desaparecer de improviso. Naquela organização combalida operam-se, em segundos, transmutações completas. Basta o aparecimento de qualquer incidente exigindo-lhe o desencadear das energias adormecidas. O homem transfigura-se. Empertiga-se, estadeando novos relevos, novas linhas na estatura e no gesto; e a cabeça firma-se-lhe, alta, sobre os ombros possantes aclarada pelo olhar desassombrado e forte; e corrigem-se-lhe, prestes, numa descarga nervosa instantânea, todos os efeitos do relaxamento habitual dos órgãos; e da figura vulgar do tabaréu canhestro reponta, inesperadamente, o aspecto dominador de um titã acobreado e potente, num desdobramento surpreendente de força e agilidade extraordinárias.

Pois é…
Euclides entendeu de primeira. Mas depois sentiu a inevitável necessidade de ser otimista. Sarney levanta a suspeita de que seu esforço, nesse particular, pode ter sido inútil.

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