Esperança e razão
Vale a pena ler a encíclica do papa. Digo por que mais adiante. Como o texto é longo, talvez muitos de vocês deixem para ler numa outra hora. Então destaco alguns trechos. Noto que a versão em nossa língua no site do Vaticano é em português de Portugal, onde se traduzem nomes próprios. Vamos lá: […]
MARXISMO E REVOLUÇÃO FRANCESA
20. O século XIX não perdeu a sua fé no progresso como nova forma da esperança humana e continuou a considerar razão e liberdade como as estrelas-guia a seguir no caminho da esperança. Todavia a evolução sempre mais rápida do progresso técnico e a industrialização com ele relacionada criaram, bem depressa, uma situação social completamente nova: formou-se a classe dos trabalhadores da indústria e o chamado « proletariado industrial », cujas terríveis condições de vida foram ilustradas de modo impressionante por Frederico Engels, em 1845. Ao leitor, devia resultar claro que isto não pode continuar; é necessária uma mudança. Mas a mudança haveria de abalar e derrubar toda a estrutura da sociedade burguesa. Depois da revolução burguesa de 1789, tinha chegado a hora para uma nova revolução: a proletária. O progresso não podia limitar-se a avançar de forma linear e com pequenos passos. Urgia o salto revolucionário. Karl Marx recolheu este apelo do momento e, com vigor de linguagem e de pensamento, procurou iniciar este novo passo grande e, como supunha, definitivo da história rumo à salvação, rumo àquilo que Kant tinha qualificado como o « reino de Deus ». Tendo-se diluída a verdade do além, tratar-se-ia agora de estabelecer a verdade de aquém. A crítica do céu transforma-se na crítica da terra, a crítica da teologia na crítica da política. O progresso rumo ao melhor, rumo ao mundo definitivamente bom, já não vem simplesmente da ciência, mas da política – de uma política pensada cientificamente, que sabe reconhecer a estrutura da história e da sociedade, indicando assim a estrada da revolução, da mudança de todas as coisas. Com pontual precisão, embora de forma unilateralmente parcial, Marx descreveu a situação do seu tempo e ilustrou, com grande capacidade analítica, as vias para a revolução. E não só teoricamente, pois com o partido comunista, nascido do manifesto comunista de 1848, também a iniciou concretamente. A sua promessa, graças à agudeza das análises e à clara indicação dos instrumentos para a mudança radical, fascinou e não cessa de fascinar ainda hoje. E a revolução deu-se, depois, na forma mais radical na Rússia.
21. Com a sua vitória, porém, tornou-se evidente também o erro fundamental de Marx. Ele indicou com exactidão o modo como realizar o derrubamento. Mas, não nos disse, como as coisas deveriam proceder depois. Ele supunha simplesmente que, com a expropriação da classe dominante, a queda do poder político e a socialização dos meios de produção, ter-se-ia realizado a Nova Jerusalém. Com efeito, então ficariam anuladas todas as contradições; o homem e o mundo haveriam finalmente de ver claro em si próprios. Então tudo poderia proceder espontaneamente pelo recto caminho, porque tudo pertenceria a todos e todos haviam de querer o melhor um para o outro. Assim, depois de cumprida a revolução, Lenin deu-se conta de que, nos escritos do mestre, não se achava qualquer indicação sobre o modo como proceder. É verdade que ele tinha falado da fase intermédia da ditadura do proletariado como de uma necessidade que, porém, num segundo momento ela mesma se demonstraria caduca. Esta « fase intermédia » conhecemo-la muito bem e sabemos também como depois evoluiu, não dando à luz o mundo sadio, mas deixando atrás de si uma destruição desoladora. Marx não falhou só ao deixar de idealizar os ordenamentos necessários para o mundo novo; com efeito, já não deveria haver mais necessidade deles. O facto de não dizer nada sobre isso é lógica consequência da sua perspectiva. O seu erro situa-se numa profundidade maior. Ele esqueceu que o homem permanece sempre homem. Esqueceu o homem e a sua liberdade. Esqueceu que a liberdade permanece sempre liberdade, inclusive para o mal. Pensava que, uma vez colocada em ordem a economia, tudo se arranjaria. O seu verdadeiro erro é o materialismo: de facto, o homem não é só o produto de condições económicas nem se pode curá-lo apenas do exterior criando condições económicas favoráveis.
ESCOLA DE FRANKFURT
22. Encontramo-nos assim novamente diante da questão: o que é que podemos esperar? É necessária uma autocrítica da idade moderna feita em diálogo com o cristianismo e com a sua concepção da esperança. Neste diálogo, também os cristãos devem aprender de novo, no contexto dos seus conhecimentos e experiências, em que consiste verdadeiramente a sua esperança, o que é que temos para oferecer ao mundo e, ao contrário, o que é que não podemos oferecer. É preciso que, na autocrítica da idade moderna, conflua também uma autocrítica do cristianismo moderno, que deve aprender sempre de novo a compreender-se a si mesmo a partir das próprias raízes. A este respeito, pode-se aqui mencionar somente alguns indícios. Antes de mais, devemos perguntar-nos: o que é que significa verdadeiramente « progresso »; o que é que ele promete e o que é que não promete? No século XIX, já existia uma crítica à fé no progresso. No século XX, Teodoro W. Adorno formulou, de modo drástico, a problematicidade da fé no progresso: este, visto de perto, seria o progresso da funda à megabomba. Certamente, este é um lado do progresso que não se deve encobrir. Dito de outro modo: torna-se evidente a ambiguidade do progresso. Não há dúvida que este oferece novas potencialidades para o bem, mas abre também possibilidades abissais de mal – possibilidades que antes não existiam. Todos fomos testemunhas de como o progresso em mãos erradas possa tornar-se, e tornou-se realmente, um progresso terrível no mal. Se ao progresso técnico não corresponde um progresso na formação ética do homem, no crescimento do homem interior (cf. Ef 3,16; 2 Cor 4,16), então aquele não é um progresso, mas uma ameaça para o homem e para o mundo.
Se vocês lerem a encíclica, verão nela renovado o convite à esperança — tema do texto — que se sustenta no amor de Cristo. Evidentemente, não há aí grande novidade, e nem se esperaria do Sumo Pontífice que dissesse outra coisa. O que acho notável nas palavras do papa é sua disposição para o diálogo com o pensamento, tanto o religioso como o leigo. Nesse sentido, a referência a Karl Marx é menos surpreendente do que a pensadores da chamada Escola de Frankfurt, que tentaram transcender, sem negá-la, a herança marxista.
Não nego, é claro, a personagem pastoral na figura de Bento 16, mas noto que ele não consegue deixar de ser o especialista refinado em teologia e filosofia, coisa que, por exemplo, João Paulo 2º não era, daí a inflexão mais mística, de um catolicismo que parecia mais vivo, mas infinitamente mais pobre nas referências e no diálogo com o pensamento não-cristão. Observem como Bento 16 rejeita o horizonte marxista, mas inscreve a teoria numa espécie de evolução natural do pensamento social. Acho que eu não concordo com ele — não! Definitivamente, não concordo com ele. Mas compreendo o esforço, que, nesse caso, é o do pastor, não propriamente o do teólogo.
Bento 16 busca ser inclusivo — compreender os caminhos e descaminhos da justiça e da esperança (tema da encíclica) — sem, contudo, abrir mão dos princípios de sua fé. Daí que não hostilize uma teoria sempre hostil ao cristianismo e busque, antes de tudo, compreendê-la no rol do que, para um herdeiro do trono de Pedro, há de ser visto como uma das fraquezas humanas — embora, reitero, compreensível.
Se me fosse dado o desafio de apontar a principal idéia-força da encíclica, diria que ela está na aposta do cristianismo — no caso dele, é óbvio, do catolicismo — como uma conquista da civilização que plasmou a melhor representação do humano. A fé no exemplo de Cristo surge como uma garantia de direito da inviolabilidade do corpo e da alma. Essa fé no mistério de Deus, para Bento 16, assegura direitos que são do homem.