Democracia e princípios
Não pensem que não me incomoda, às vezes, insistir em textos que têm um caráter declaratório, apelando a conceitos: “Democracia é isso; democracia é aquilo; o estado de direito supõe tais qualidades…” Às vezes, parece que sou quase um missionário ou um pastor, ainda que pregando aqui do meu refúgio, da minha quase solidão. Deveríamos […]
Vocês viram que dei grande destaque à entrevista que o programa Roda Viva, da TV Cultura, fez com o tal Mano Brown. Alguns reclamaram: “Tanta coisa mais séria acontecendo…” Parece-me muito importante, meus caros, que não saibamos convocar a legalidade, a democracia e o estado de direito quando eles são afrontados, ainda que de maneira tosca, numa emissora pública de TV. Entendam: a imprensa, e também e talvez especialmente um canal de televisão inteiramente financiado com dinheiro DO público, tem de ser uma espécie de radar a detectar os valores que não NOS servem. Cabe perguntar: quem está compreendido neste meu “NOS”? Quem somos NÓS? Todos estamos conformados com a democracia? A resposta, infelizmente, é NÃO!
Conformar-se com ela não implica defender as suas misérias. Para ficar no caso do rapper que concedeu a entrevista: as mazelas sociais que ele aponta em sua música requerem, claro, uma resposta política e uma resposta econômica — que, diga-se, vêm sendo dadas. Numa velocidade certamente inferior ao que seria desejável. Mas, em nome da justiça social, vamos santificar o crime, chamar traficante de “comerciante”, demonizar a polícia, fazer a apologia da violência como forma de defesa dos oprimidos? E tudo sob o silêncio cúmplice dos que são, queiram ou não, procuradores do estado de direito? Pior do que isso: Mano Brown elogiou o fato de Lula não entregar os seus parceiros. É essa a sua ética alternativa, a voz justa da periferia que vai combater o centro?
Mas é só ele?
Muitos podem indagar: mas é só ele que transgride? Ah, não mesmo. A grande imprensa brasileira, cumprindo a sua missão, parece, às vezes, infelizmente, uma delegacia de polícia, não é? Os políticos profissionais que falham na sua tarefa de bem representar seus eleitores têm merecido, desde a redemocratização, um tratamento implacável. Ainda bem. É claro que há exceções; há o jornalismo canalha, chinfrim, que está à venda. Mas, nos grandes centros, na imprensa que conta, ele é minoria.
Ocorre que há uma certa tradição na imprensa, caudatária da fase de combate à ditadura, de tratar com dureza os, como vou chamar?, “crimes da direita”. A expressão nem é tão exata, mas é a mais abrangente das disponíveis. Tanto quanto há uma óbvia leniência com “os crimes da esquerda” — A NÃO SER, NOTEM BEM, QUE ELES SE PAREÇAM COM CRIMES DA DIREITA. Exemplifico para ser mais claro: considera-se grave o mensalão petista (e é mesmo), entre outras razões, porque isso significaria uma adesão do PT ao que se chamou “política tradicional”. Quantas vezes vocês leram que o partido provou ser “igual aos outros”, como se ele, na sua natureza mesma, fosse outra coisa?
Sim, é fato: estou entre aqueles que dão particular atenção à forma como essa esquerda assalta não apenas os cofres públicos, mas também a institucionalidade. Confiro especial visibilidade a seus valores, que se capilarizam até chegar à entrevista de um rapper para quem o banditismo encontra justificativa no fato de a sociedade ser “criminosa”, o que faz, segundo ele, com que um assaltante de banco não seja desonesto. Observe que há nisso uma mudança importante de qualidade — na verdade, uma degeneração.
Mudança de qualidade
O “rouba, mas faz” nunca foi uma divisa assumida por aqueles que “roubavam e faziam”. O binômio era uma pecha que lhes era — ou é — pespegada por seus críticos. Nunca se tentou transformar esse par num norte moral. Nos dias que correm, a coisa é bem outra. Na entrevista concedida há dias à revista argentina Debate, o que disse Marilena Chaui? Segue em vermelho:
“Há indícios de que alguns membros do primeiro governo de Lula negociaram com parlamentares, de acordo com essa mesma tradição. Mas o PT e seu presidente operário??? Como ousam fazer o mesmo que os partidos da classe dominante??? Que ousadia absurda!!! Resultado: os meios de comunicação transformaram a situação em um caso único, nunca visto antes, e construíram a imagem do governo mais corrupto da história do Brasil”.
Eis aí. Chegamos ao tempo em que ROUBAR SE TORNOU UM MISTO DE ÉTICA DE CONTESTAÇÃO COM ÉTICA DE INTERAÇÃO. Para Marilena, parece, a grande novidade está no fato de o seu “presidente operário” recorrer ao método que ela diz ser da classe dominante para, entenda-se, vencer a classe dominante!!! Não me espanta que a petista Maria Rita Kehl se quede de amores pelo “pensamento” de Mano Brown. O corpo teórico do rapper em nada se distingue do da filósofa. Pra que tanto Spinoza, meu Deus? Resta evidente que, no caso, o PT não veio para eliminar os vícios, mas para pô-los a seu serviço, embalando os crimes antigos com os crimes que lhe são peculiares. E o ódio à democracia é um deles.
Assim, por mais que me aborreça — e aborrece — lembrar questões de princípio e ser, às vezes, sentencioso, é preciso lembrar alguns dos valores que organizam uma sociedade democrática, que tem de viver sob o império da lei.