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Reinaldo Azevedo

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Contardo Calligaris 1 – Desbravando os sertões da moral

Fãs da extinta Primeira Leitura e muitos dos outros milhares de leitores que passaram a freqüentar este blog depois de hospedado por VEJA me cobram a publicação da entrevista que fiz com Contardo Calligaris em abril do ano passado, publicada na edição de maio, penúltimo número da revista. De fato, gosto muito do resultado — […]

Por Reinaldo Azevedo Atualizado em 6 jun 2024, 08h16 - Publicado em 5 nov 2007, 05h33
Fãs da extinta Primeira Leitura e muitos dos outros milhares de leitores que passaram a freqüentar este blog depois de hospedado por VEJA me cobram a publicação da entrevista que fiz com Contardo Calligaris em abril do ano passado, publicada na edição de maio, penúltimo número da revista. De fato, gosto muito do resultado — e Contardo também.

Dado o ambiente de vulgaridade e mistificação que tomava e toma conta do país, eu a considero, ainda hoje, um presente aos leitores. É uma conversa longa — 16 páginas. Optei, vocês verão, por uma edição um tanto complicada, mas bem-sucedida, com rubricas laterais que servem de guia ao leitor, já que, num bate-papo de mais de quatro horas, passeamos por muitos autores e fatos históricos.

Havia marcado de encontrá-lo em seu consultório no dia 18 de abril do ano passado. Tive uma crise de tontura. Cancelei. Remarcamos para o dia 21, feriado nacional. Eu continuava doente. Liguei, constragido, afirmando que não conseguia andar. Ele se dispôs a vir à minha casa. Embora eu mal pudesse mexer a cabeça sem que arrastasse comigo o mundo à volta, a conversa fluiu boa e generosa. O resto vocês já sabem. Em maio, fiz as cirurgias. Em junho, Primeira Leitura fechava as portas — de fato, em abril, já sabíamos que estava condenada. Foi-se. Sem estrondo nem suspiro.

A entrevista com Contardo é um pouco do muito de bom que se fez por lá. Ontem, publiquei a reportagem de Rui Nogueira sobre os sem-terra. Um marco. Não custa lembrar que o fechamento foi aplaudido por muita gente. É do jogo. Não reclamo. A equipe está por aí, honrando o bom jornalismo. Dois meses depois, eu estava na VEJA.

Republico abaixo um pequeno grande trecho e publico um link com a íntegra em PDF. Também fiz uma cópia em word, mas, na passagem de um programa para outro, a hifenização danou-se toda. Vou corrigir antes de pôr no ar. Por que faço isso? Porque o debate público pode ser superior a esse lixo mental a que estamos nos acostumando, conforme evidencia o que vai abaixo, apenas um trecho das 16 páginas.

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A íntegra em PDF está neste endereço:
https://tinyurl.com/36r3nb (é preciso copiá-lo).

Na seqüência, a abertura da entrevista. No post abaixo deste, um trecho do diálogo.
*
Gosto da palavra “alastrante”. Como qualquer outra, pode ser boa ou ser má. Ruim é o mal que se alastra; bom é quando a generosidade contamina. A primeira vez que me lembro de a ter lido em literatura foi num poeminha de Mário Quintana – “pois que tem que a gente inclua no mesmo alastrante amor (…)?” –, e a palavra me pegou para sempre. Se gosto de coisas, de gente, eu as digo, então, “alastrantes”. Os versos do gaúcho eram uma citação de Proust, No Caminho de Swann, o primeiro dos sete volumes de Em Busca do Tempo Perdido. Swann estava em frente à casa de Odette e descobriu que até mesmo a macieira pertencia à sua ordem de afetos, a seu “alastrante amor”. Tempo, memória, experiência individual, vivência subjetiva. Foro íntimo.

O psicanalista Contardo Calligaris, italiano de nascimento, andarilho por escolha, é de uma inteligência “alastrante”. Seguem a esta abertura 14 páginas de uma entrevista encantadora por conta do rigor intelectual do entrevistado e, vá lá, da disposição deste interlocutor de se deixar contaminar pelo “Bem”, por aquele que falava e se expressava com toda a singularidade que faz cada um de nós ser o que é. “O Mal”, ele nos diz, “está no coletivo, na renúncia ao foro íntimo.” O indivíduo ainda é a mais eficaz defesa contra a barbárie, o totalitarismo, o vulgaridade. Certa feita, um jovem que se queria marxista, de 14 ou 15 anos, apostrofou o pai, que houvera sido militante antifascista sem ser, no entanto, comunista: “Como podia?”. E o pai, então, lhe deu uma resposta iluminada: “Eu era antifascista porque, no fundo, achava os fascistas tão vulgares!”.

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O menino também é pai do homem, como nos ensinou Machado de Assis, ou seu Brás Cubas. Aquelas palavras foram repercutir mais tarde, quando Contardo conheceu Roland Barthes, de quem foi aluno, e percebeu que a estética também pode ser uma ética: “Uma ética do não-dogmatismo, da curiosidade, da capacidade de amar a própria coisa, desde uma história em quadrinhos até Chateaubriand”. E então desandamos a falar da necessidade da arte, de sua função, que não pode ser outra senão “a harmonia interna que produz”. Mas ainda faltava ser mais explícito: “A produção de um objeto cuja finalidade é externa, por exemplo, que é ideológica e declarativa, não é mais uma produção artística. Isso vale tanto para a arte conceitual como para o realismo socialista”.

E, assim, passamos a tarde, numa conversa que propus, e ele topou, fosse dividida em três partes, como em Os Sertões, de Euclides da Cunha: O Homem, A Terra, A Luta. Queria chegar a outros sertões, a outras lutas, menos sangrentas talvez, mas não menos duras. Na primeira parte, falamos desse homem todo-mundo-e-ninguém, gênero neutro, que designa a espécie, e de um outro, ele próprio, o escrutinado da tarde. Na segunda, o ambiente de nossas pelejas, o mundo, este Brasil onde a fraqueza da cultura republicana faz com que um escândalo de grandes proporções ainda seja percebido como coisa quase corriqueira.

Passeamos por autores da urbe e da orbe, tentando contar e recontar histórias, em busca de tempos e oportunidades perdidos. Para poder ver mais adiante. Ou, ao menos, ter instrumentos para tanto.

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É nessa parte que estão as lutas mundanas, o conflito de culturas, a marcha da civilização, os instrumentos com que entender e reinventar o mundo, as utopias que matam, os amores que são de salvação. Pensador da cultura, ele jamais se nega ou refuga. Lembro-me de São Paulo na Primeira Epistola aos Coríntios: posso tudo, mas nem tudo me convém. Eis um dos fundamentos, a liberdade, plasmado na civilização ocidental e que é, sim, seu mais precioso valor, pelo qual vale a pena lutar. Falei de Paulo? Contardo considera que as bases do bom individualismo moderno estão dadas pelo cristianismo. A conversão nasce da escolha. Ali se fundava uma idéia de humanidade, que antes não existia.

A terceira parte, A Luta, ficou reservada ao homem no espelho – vamos falar um pouco do narcisismo –, aquele que chega ao divã do analista, “doente por falta de significado e de significação”, como qualquer um de nós, e procura, então, uma narrativa para sua vida, uma história. Que, contada e recontada, vai concorrendo para redefini-lo e levá-lo, então, até a margem do rio. Ao fim da entrevista, talvez estivéssemos ambos felizes – eu estava: um pouco tonto e feliz.

Explico o meu estado. Havia marcado a entrevista para o dia 18 de abril. Fui acometido de uma crise de labirintite. No dia 21, ainda não estava bem, e era o meu prazo-limite. Mas não tinha como sair. O andarilho Calligaris, aceitando, desta feita, um percurso mais curto, dispôs-se a ir até a minha casa, uma doação ao paciente daquela tarde. Mas ele mesmo diz que uma das coisas boas da psicanálise é não “dar presentes”. Fizemos algumas trocas simbólicas – eu saí ganhando, é claro – e tentamos pôr alguma ordem entre o “cosmos sangrento e a alma pura” (ave, Mário Faustino!). Tentamos entender os “hábitos do corpo e da mente” de que fala Tocqueville, que ambos apreciamos tanto.

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E eu indaguei, com Hannah Arendt, outro afeto intelectual e moral compartilhado, como é que podemos, então, resistir ao “mal” e manter o “foro íntimo”, a inviolabilidade do indivíduo, morada suprema da liberdade. A resposta se lê páginas adiante. Mesmo longa, muita coisa deixa de ser publicada nesta entrevista. O dia caiu menos “doente de falta de significado e de significação”. Eu o acompanhei, trôpego, até a garagem, voltei, fechei a porta e comentei com a minha mulher: “Ele é de uma inteligência alastrante”.

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