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Reinaldo Azevedo

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Blog do jornalista Reinaldo Azevedo: política, governo, PT, imprensa e cultura

Compreendendo “a mulher sem orifício” de Chico Buarque. Ou: Esse nem tão obscuro objeto da interpretação

Bastou eu anunciar que daria uma esculhambadinha no Chico Jabuti por causa de sua “mulher sem orifício”, e lá veio uma chuva de protestos. Que delícia! Há uns 20 anos escrevi, pela primeira vez, que chutar Jesus Cristo era, para muitos, um dever! Mas ai daquele que ousasse falar mal de Che Guevara! Em entrevista […]

Por Reinaldo Azevedo Atualizado em 31 jul 2020, 11h28 - Publicado em 30 jun 2011, 22h31

Bastou eu anunciar que daria uma esculhambadinha no Chico Jabuti por causa de sua “mulher sem orifício”, e lá veio uma chuva de protestos. Que delícia! Há uns 20 anos escrevi, pela primeira vez, que chutar Jesus Cristo era, para muitos, um dever! Mas ai daquele que ousasse falar mal de Che Guevara! Em entrevista publicada hoje na Folha, a filha do assassino deixa claro por que, com efeito, seu pai era superior ao Nazareno! Essa gente não tem limites. A propósito: o cineasta cubano e comunista até debaixo d’água — ou de outro comunista Henrique Pineda Barnet, que conviveu com Che em Sierra Maestra, atesta que ele tinha orifício. E a vida, por lá, era um “coito permanente na selva”.

No Brasil, além de Cristo, dá pra esculhambar Tiradentes, Deodoro, Getúlio (Emir Sader escreve “Getulho”…), FHC… Até de Lula se pode falar mal (só um pouquinho). Mas não ouse apontar orifícios na ideologia ou na obra de Chico Buarque! Nunca! As pessoas logo perguntam: “Mas qual é o seu problema?” Ah, se eu tivesse um só, hehe…

Depois de um inverno criativo, em que se dedicou à prosa e já demonstrei por que ele é ruim nessa coisa , o “Filho do Homem”, “Aquele que é”, deu à luz uma composição, vendida como “música de trabalho”. A letra é mesmo espantosa:

Hoje topei com alguns conhecidos meus/
me dão bom dia cheios de carinho/
dizem pra eu ter muita luz, ficar com Deus/
eles têm pena de eu viver sozinho.
Hoje a cidade acordou toda em contramão/
Homens com raiva, buzinas, sirenes, estardalhaço/
De volta a casa na rua/
Recolhi um cão/
Que de hora em hora me arranca um pedaço/
Hoje pensei em ter religião/
De alguma ovelha, talvez, fazer sacrifício/
Por uma estátua ter adoração/
Amar uma mulher sem orifício/
Hoje afinal conheci o amor/
E era o amor uma obscura trama/
Não bato nela, não bato/
Nem com uma flor/
Mas se ela chora/
Desejo me inflama/
Hoje o inimigo feliz veio me espreitar/
Armou tocaia lá na curva do rio/
Trouxe um porrete e um porreta pode me quebrar/
Mas eu não quebro não/
Por que sou macio, viu?”

Pois é…
Orifício, no singular, Che Guevara também tinha. Aliás, mulheres e homens os têm no plural
elas, três, coisa que muito marmanjo não sabe; a gente, dois, isso para me fixar na pura descrição pélvica. Sei, sei, sei… Mas é claro que Chico está metaforizando. Antes de a letra passar pelo complicômetro dos professores de literatura do Complexo Pucusp, a gente poderia resumir assim: “Chico não conseguiu pegar quem queria; a moça caiu fora e não quis tomar banho de mar com ele no Leblon”.

Mas uma obra não é o homem, certo? Digamos que o “eu lírico” demonstra a angústia do desejo não-satisfeito e se martiriza com a recusa. Não é que a mulher não tenha orifício, é evidente; ela tem, mas, ao apaixonado, está interditado. Seja pela escolha das palavras “obscura trama” , seja pela situação (“não bato nela”; “se ela chora, desejo me inflama”), é evidente que o autor andou revendo “Esse Obscuro Objeto do Desejo”, o último filme de Buñuel, lançado em 1977.

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A impossibilidade de alcançar o orifício e a “obscura trama” estão plenamente exemplificadas a partir dos 7min20s. Se quiserem, vejam. Retomo depois.

[youtube=https://www.youtube.com/watch?v=S4qtYZROAjc&w=560&h=349]

Voltei
O filme é baseado no livro do francês Pierre Louys, cujo título original é “La Femme e le Pantin” — “A Mulher e o Fantoche”. Buñel carrega nas tintas do surrealismo, já presentes no livro. Mateo, um homem rico e culto, apaixona-se por uma empregadinha ordinária, Conchita (Concha), de 19 anos, que o submete às piores humilhações morais, recusando-se a entregar-se, embora aceite sua corte e seus presentes. E, sim, inicia-se um jogo perverso entre ambos. O “eu lírico” de Chico, delicado e para não espantar a clientela, não bate na mulher nem com uma flor, mas Mateo desce o sarrafo em Conchita, e isso é parte do jogo. Vai um outro vídeo. Depois, reproduzo um trecho do romance que narra justamente a situação filmada por Buñuel (com algumas mudanças). Vejam o filme  do começo até 2min31s e, depois, entre 6min03s e 8min50s. Volto em seguida.

[youtube=https://www.youtube.com/watch?v=DnBSNPu0p54&w=425&h=349]

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Voltei
Agora leiam um trecho do romance:
— Concha, de mim não ouvirás ofensas ou censuras. Escuta: fizeste-me sofrer além do suportável. Inventaste torturas morais para o único homem que te amou com paixão. Previno que vou te possuir à força, e não uma vez, estás entendendo? Mas tantas quantas eu desejar daqui até o anoitecer.

— Nunca! Nunca serei tua!,gritou. Tenho horror de ti, já te disse. Tenho ódio de ti como da morte! Mais ódio de ti do que da morte! Só se me matares é que me terás!.

Foi aí que comecei a surrá-la em silêncio. Eu estava mesmo enlouquecido. Não sei muito bem o que aconteceu. Os meus olhos mal enxergavam. Lembro-me apenas que batia nela com a regularidade do lavrador que malha o trigo – e sempre nos mesmos lugares: no alto da cabeça e no ombro esquerdo. Nunca ouvi gritos tão lancinantes.
(…)
Concha soerguera-se: estava ainda de joelhos, as mãos perto do rosto, olhar voltado para mim. E nesse olhar não havia a mínima sombra de censura, mas, não sei como dizer, uma espécie de adoração. Os lábios tremiam-lhe tanto que nem conseguia articular… Aos poucos, percebi na voz entrecortada:
— Ó! Mathieu! como me amas!
Sempre de joelhos aproximou-se e murmurou:
— Perdão, Mathieu! Perdão! Também te amo!.
Pela primeira vez, era sincera. Eu é que não acreditava mais. Continuou:
— Como sabes bater, coração! Como foi suave! Foi bom! Perdão por tudo o que te fiz! Estava louca. Eu não sabia. Então sofreste por minha causa? Perdão! Perdão! Perdoa-me, Mathieu!”
E disse ainda com a mesma voz meiga:
— Não me possuirás à força. Espero-te nos meus braços. Ajuda-me a levantar. Não disse que ia te fazer uma surpresa? Pois bem, vais ver já: ainda sou virgem. A cena de ontem era uma farsa apenas para te fazer sofrer, pois posso confessar agora: não te amava nem um pouco até hoje. Mas o meu orgulho não me deixaria escolher um Morenito… Sou tua, Mathieu. Serei tua mulher esta manhã, se Deus quiser. Tenta esquecer o passado e compreende a minha pobre alma. Até eu não me entendo bem. Parece que estou acordando. Vejo-te como nunca te vi. Vem logo para mim”.
E de fato, amigo, Concha era virgem.

Do compleo ao banal
O livro de Louys é curtinnho, 112 páginas na edição que tenho aqui, mas está a léguas, e isso vale também para ao filme, da estonteante banalidade da música de Chico, que abriga a metáfora mais infeliz da história da MPB. Livro e filme tratam de algo bem mais complexo do que a recusa de uma mulher,  a negativa de entregar seu “orifício”. Vale como um pequeno ensaio sobre a impossibilidade do amor. O desejo de Mateo — e em que medida isto é o homem; aquele homem de bingolim, do artigo 226 da Constituição, tornado sem efeito pelo STF? — precisa da posse do “objeto”. A mulher, na visão do narrador ao menos, tenta e seduz. São seres de natureza distintas, que se entregam ao jogo da atração e da repulsa.

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E a estátua?
Bem, meus caros, aí vai outra metáfora. Tivesse a personagem alcançado o orifício, poderíamos evocar Pigmaleão, que se apaixona pela estátua que ele mesmo esculpiu. Só que foi um amor bem-sucedido, já que Afrodite se apieda de Pigmaleão e dá vida ao mármore frio. Na obra de Chico Jabuti, que é leitor de poesia, foi diferente. Reproduzo abaixo um poema de Camilo Pessanha, um bom autor do Simbolismo português, e vocês verão como a metáfora da mulher-estátua, do amor impossível, pode merecer um tratamento superior:

Estátua
Cansei-me de tentar o teu segredo:
No teu olhar sem cor, de frio escalpelo,
O meu olhar quebrei, a debatê-lo,
Como a onda na crista dum rochedo.

Segredo dessa alma e meu degredo
E minha obsessão! Para bebê-lo
Fui teu lábio oscular, num pesadelo,
Por noites de pavor, cheio de medo.

E o meu ósculo ardente, alucinado,
Esfriou sobre o mármore correto
Desse entreaberto lábio gelado…

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Desse lábio de mármore, discreto,
Severo como um túmulo fechado,
Sereno como um pélago quieto.

Acho desnecessário fazer comparações. Os “chicófilos” e “chicólatras” não precisam ficar irritados. Continuo a considerá-lo um bom letrista e um bom sambista. A ruindade de “Querido Diário” nem chega a ser expressão de sua obra. O que faço acima é demonstrar como certos “achados” de alguns intocáveis sofrem a influência de uma cultura nem sempre ao alcance das massas, mesmo as do Complexo Pucusp… Já se demonstrou aqui que a bela canção “Pedaço de Mim”, do próprio Chico, pertenceu antes a Shakespeare…

Então… Acusam-me de ficar pegando no pé de Chico Jabuti. Eu não! Vai ver eu não babo porque prefiro compreendê-lo. Compreender orifícios são ossos do ofício.

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