Queridos leitores,
Vou falar, uma vez mais, sobre José Saramago. Mas vocês perceberão, que, de fato, falarei sobre algo mais amplo, que diz respeito a alguns princípios e também à pobreza do debate cultural, político e ideológico — coisa que, infelizmente, não se restringe ao Brasil. Aqui, no entanto, as coisas realmente não andam fáceis. Vamos lá.
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Li Saramago após Saramago, até o dia em que desisti, porque certas coisas vão se impondo se você tem uma determinada profissão, goste você da tarefa ou não. E eu escrevi sobre literatura durante um bom tempo — o livro Contra o Consenso reúne textos sobre as tais “artes”. Depois me voltei inteiramente para a política. Alguns deram “graças a deus!”, eu sei. E aí foi gente da política que ficou chateada. É da vida.
Sim, isto é possível: não gosto de Saramago, para ser sintético. E é uma besteira afirmar que a minha restrição é essencialmente ideológica, embora também seja. Já chego lá. Eu não gosto é do seu texto mesmo. Sua “escritura”, como diriam aquelas mocinhas e mocinhos do complexo PUCUSP, não me agrada, não me interessa e não me diz nada. Ou me diz: sua sintaxe de exceção, as vozes do discurso que vão se misturando, aquele fluxo de pedregosa verborragia, aquela mistura de tempos, tudo aquilo vai me cansando.
Na VEJA, escrevi um artigo sobre Graciliano Ramos, que considero o melhor prosador do modernismo brasileiro — era, não custa lembrar, comunista. Sei fazer a distinção entre as escolhas ideológicas do escritor e sua obra — especialmente quando ele próprio é capaz de fazê-la. Naquele artigo, ao falar do que considero grande em Graciliano, expus algumas das minhas restrições a Guimarães Rosa, por exemplo. Há certa “inventividade” na prosa que, a meu juízo, não marca exatamente uma “evolução”. A questão, para mim, é saber se ela concorre ou não para chegar a lugares a que não se chegaria por intermédio de um discurso mais fluido e, se quiserem, convencional. No caso de Rosa e Saramago, a minha resposta pessoal para a questão é esta: “Não!” Assim, onde muitos vêem um grande avanço e expressão da dita “inventividade”, vejo maneirismo, exagero e excesso de brocados — ainda que brocados ditos “modernizantes”.
Mas a minha restrição não é só essa. Este leitor — sim, amigos de Saramago: sou apenas um bosta de um leitor que não gosta do aplaudido escritor — considera pedestre a metafísica saramaguiana. E, nesse caso, com efeito, o seu “comunismo hormonal” faz diferença porque empresta sentido moral às coisas que escreve. Ou bem Ensaio Sobre A Cegueira, por exemplo, é uma alegoria — e, então, é preciso discutir a verdade paralela que aquela narrativa enuncia — ou bem é só uma história cretina. Não sendo uma história cretina, e ela não é!, expõe uma visão sem dúvida pessimista do mundo — isso é bom: gosto dos pessimistas —, mas também totalitária.
O debate cultural está pouco preparado — e, sobretudo, pouco informado — para tratar de todas as implicações de um livro? Lamento! A epidemia de cegueira é o elemento que detona, no livro, o horror, moral e cultural, de que somos todos formados. A criatura precisa ser ordenada, contida, ter os apetites controlados. Ou caminhamos para o caos. O livro de Saramago não oferece resposta, mas o escritor Saramago oferecia: e a resposta estaria num sistema social mais justo — para ele, o comunismo. E o guia dotado de luz era um partido. AS COISAS NÃO SÃO ASSIM PORQUE EU QUERO; SÃO ASSIM PORQUE ASSIM SARAMAGO QUERIA QUE FOSSEM.
Eu não partilho de todo aquele seu pessimismo. Ao contrário até: acho, candidamente, que o mundo tem melhorado continuamente, o que não quer dizer que melhore sempre (se o achasse, seria um otimista, e eu não sou) ou que não possa piorar. Não tendo aquela mesma visão bestial da humanidade, não quer dizer que não partilhe dos muitos desassossegos sobre a nossa condição. Mas, utopia contra utopia, acho um mundo de liberdades individuais superior a um mundo de controle. “Ah, você recorre a coisas que estão fora do livro”, poderia protestar alguém. Uma ova! Estão dentro do livro, vivíssimas. A cegueira foi o pretexto que trouxe à luz — sem trocadilho — os horrores acumulados de uma civilização que Saramago considerava pouco solidária porque assentada em valores que ele desprezava.
Como ignorar que ele se considerava partidário de uma visão totalizante do homem, oferecida pelo marxismo? Um marxismo que, se examinado detidamente, também era troncho: Marx, afinal, considerava o capitalismo civilizador; para ele, mera etapa, mas civilizador ainda assim.
Não é verdade que a visão de mundo — e, creio, nem tinha como ser diferente — de Saramago estivesse ausente de sua obra. Está lá, no muito esquemático, embora disfarce bem, Memorial do Convento e em O Ano da Morte de Ricardo Reis — um livro chatíssimo!. Nos dois casos, uma espécie de “inteligência” superior do poder parece organizada contra a natural força do povo. E o desfecho não é bom. O pessimismo de Saramago o impedia de ser um comunista festivo, a anunciar novas auroras e redenções. Ao contrário até: a força de seu discurso está no triunfalismo da derrota. Evangelho Segundo Jesus Cristo é seu livro imperdoável. E não vai aqui qualquer juízo ditado pela questão religiosa. Na literatura, não se desconstrói a religião sem se apaixonar pelo fato religioso. O pio Dostoievski conseguiu ser muito mais duro com Deus.
Estes dias
O espetáculo de ignorância e mistificação que se seguiu à morte do escritor é fabuloso, especialmente em tempos de Twitter, em que as celebridades lamentam o acontecido, dizendo-se muito chocadas. Fiquei tentado a convidar algumas delas a escrever para o meu blog um texto — original!!! — de 20 linhas que fosse sobre o seu “Saramago predileto”. Cheguei a ler e a ouvir depoimentos afirmando que Saramago era anti-religioso, sim, mas jamais se negou ao diálogo. Mesmo? “Diálogo” com quem? Com o papa? Outros o transformaram num dos maiores e mais doces humanistas do século passado e deste. Aí não dá!
Eu digo por que não gosto da LITERATURA de Saramago e desprezo — o verbo é esse — a sua ideologia e seu silêncio cúmplice diante de regimes totalitários. Já à democracia ocidental, que afinal lhe deu fama, prestígio e fortuna, nunca dispensou uma só palavra de apreço. Escritores, como ele próprio, que têm o ofício que ele tinha, estão encarcerados em Cuba. Estavam encarcerados na União Soviética e nos países da Cortina de Ferro. E ele estava lá, não vendo razões para renunciar a seu “comunismo hormonal” nem para deixar de ser comunista. O que mais era preciso?
Não! Eu não gosto do escritor. Acho seu texto desagradável e superficial sua visão sobre, vá lá, a humanidade e a cultura porque presa a dogmas que cegam. Mas eu o respeito o bastante para não tentar fazer de “José” um homem que “José” nunca foi. Laureado com o Nobel, não se tornou mais generoso nem mesmo com aquilo que desconhecia, negando-se a aprender. Chegou a criticar o governo Lula em 2004 nestes termos em entrevista à BBC:
“Aplaudi, apoiei, todos nós aplaudimos e festejamos a vitória (de Lula). Mas, neste momento, sou bastante crítico, sobretudo com a política econômica, com esse acordo com o FMI que ele aceitou e que tinha uma condição fundamental que é o pagamento da dívida externa. Se isso se converte em prioridade, é claro que os problemas sociais vão ser postos em segundo plano”.
O “humanista” Saramago atacava justamente aquela que era, e ainda é, a única virtude do governo Lula. Que um comunista veja o mundo pelo avesso, disso estou certíssimo. Fazer de Saramago um humanista ou “homem do diálogo”, aí já estamos no terreno da mistificação e da boçalidade.
Encerro
Não! Eu não gosto das idéias de Saramago. E não gosto dos livros de Saramago. Nos dois casos, disse por quê. Desconheço uma maneira decente de gostar do que ele pensava. Mas já li bons textos de admiradores de sua obra. Melhor assim! A pluralidade é um dos traços que distinguem o mundo que Saramago adorava odiar. Mais uma evidência do seu erro.
Que descanse em paz! Não saúdo, obviamente, a sua morte nem vou publicar eventuais comentários que enveredem por aí. Lamento é a burrice e a mistificação embevecidas que precisam inventar um Saramago que nunca existiu para defender, sem reservas, o que existiu. Vale uma das máximas de Voltaire: “O segredo de aborrecer é dizer tudo”. Pois não…