Bruno Tolentino 2 – Dez posts para o poeta
Abaixo, reproduzo nove posts que escrevi sobre Bruno Tolentino, desde o anúncio de um debate que fizemos por ocasião do lançamento de A Imitação do Amanhecer, no dia 27 de junho do ano passado, rigorosamente um ano antes de sua morte, até o mais recente, em 3 de julho deste ano. POSTS PUBLICADOS NO DIA […]
POSTS PUBLICADOS NO DIA 3 DE JULHO DE 2007
“Um dia hei de morrer (…) não como andei morrendo até hoje”
Voltei. Tinha ido à Missa de Sétimo Dia do poeta Bruno Tolentino. Segue o Soneto III-96 de A Imitação do Amanhecer, uma das preciosidades do “cacto insolente a situar-se onde o deserto empalidece”. Ah, sim. Assisti a uma missa. De verdade. Católica.
E um dia hei de morrer eu também… Totalmente.
Não como andei morrendo até hoje, sozinho,
por minha própria conta como um Rilke mesquinho
com sua rosa seca, um fantasma, um demente,
Alexandria, o temporão sobrevivente.
Do olho branco do sol vai surgindo um espinho
que descobre os cactos todos do caminho,
e a vida inteira eu fui assim: cacto insolente
a situar-se onde o deserto empalidece.
Hei de espernear a última gota do rude
dom do cacto orgulhoso ante a decrepitude,
e hei de morrer contando os graus; a minha prece
há de ser geométrica porque afinal não pude
embalsamar a luz cadente, o sol que desce.
Ode à estátua infinda
A Missa de Sétimo Dia de Bruno Tolentino acontece nesta terça, às 19h, na Igreja Nossa Senhora de Fátima, na avenida Doutor Arnaldo, 1831, em São Paulo. No Rio, a missa será na quarta-feira, às 11h30, no Mosteiro de São Bento. Dele, um pouco do muito que fica: o Soneto III-159, de A Imitação do Amanhecer. Ninguém vai terminar a ode à estátua infinda. Mas consola saber que há quem se dedique, até a morte, a essa obra inacabada. Como Bruno.
Penso em Píndaro agora, que também não sabia
se era um modo de ser ou de dizer a ode;
ou na respiração de Whitman, que sacode
interminavelmente folhas sem fim; na fria
resignação de Ovídio, que nunca encontraria
a sílaba final; revejo o velho Auden
abandonando tudo aquilo que escrevia
para maravilhar-se de que afinal o molde,
a forma mais exata, tremesse, fosse ainda
espasmo, mutação… Rilke chamava-o brisa.
Mas volto mais perplexo a ti, rosa de cinza,
roda de luz, Alexandria eterna, linda,
inacabável… Existias? Quem precisa,
quem ousa terminar a ode à estátua infinda?
POSTS PUBLICADO NO DIA 29 DE JUNHO DE 2007
Nihil obstat
Se você clicar aqui,, entra num site que traz alguns textos de Bruno Tolentino. Há fragmentos de O Mundo como Idéia, o poema Ao Divino Assassino — definido como “Uma Litania Ante o Sagrado Coração, concebida em Paray-le-Maunial, à época do acidente fatal de Anecy Rocha” — e Nihil obstat, que integra o livro Os Deuses de Hoje. Nesse caso, é possível ouvi-lo declamando.
“Nihil obstat”
II
É preciso que a música aparente
no vaso harmonizado pelo oleiro
seja perfeitamente consistente
com o gesto interior, seu companheiro
e fazedor. O vaso encerra o cheiro
e os ritmos da terra e da semente
porque antes de ser forma foi primeiro
humildade de barro paciente.
Deus, que concebe o cântaro e o separa
da argila lentamente, foi fazendo
do meu aprendizado o Seu compêndio
de opacidades cada vez mais claras,
e com silêncios sempre mais esplêndidos
foi limando, aguçando o que escutara.
Um vídeo com Bruno Tolentino
Quem não conheceu Bruno Tolentino pode clicar aqui e ver uma entrevista sua ao programa Sempre Um Papo, que dura coisa de 50 minutos. Ele era capaz de dizer coisas fundamentais sem alterar o tom de voz com que falava sobre as banalidades do cotidiano. Assim era seu mundo. Esse encontro ocorreu há oito meses. Nota-se que sua saúde já estava um tanto precária. Impecável, como sempre, a lucidez
POST PUBLICADO NO DIA 28 DE JUNHO
Bruno, até breve!
Hoje, aquele que era o nosso maior poeta, Bruno Tolentino, foi enterrado. Ficou sua obra gigantesca. É uma perda que será maior a cada dia: para a poesia, para o pensamento, para mim, que o amava tanto. Não consegui ir ao hospital, ao velório, à missa. E estou hoje um pouco pior do que ontem. Tenho aqui ao meu lado A Imitação do Amanhecer, que li, a eito, soneto após soneto, e que abro, aleatoriamente, como quem telefona para um amigo para falar sobre quase nada, em busca de algum conforto, de alguma indignação, da partilha de algum bem.
Reproduzo abaixo o último soneto do livro — III-165. Leiam em silêncio, algumas vezes, para criar intimidade com as palavras. Depois façam uma leitura em voz alta, obedecendo às pausas mínimas ao fim de cada verso. Depois repitam a operação, mas aí obedecendo ao ritmo da sintaxe. E então percebam a sobreposição de melodias: uma música que se faz gratuita, quase alheia ao sentido, e outra, rigorosa, racional, na medida.
Música e composição. “Ut pictura poesis”, recomendava o poeta latino Horácio: a poesia como pintura. Isso significa aderir ao rigor da composição: a escolha do vocábulo certo, cujo sentido vai-se desdobrando verso após verso, com o pincel fazendo a opção certa da cor, do volume, do detalhe, do gesto. As rimas e as assonâncias revelam o sentido numa forma em que nada é gratuito.
O que foi que perdemos nesses anos, com certo prosaísmo distraído, infantil, confessional? Perdemos a experiência da poesia como uma construção, um labor. Não a gratuidade da forma, mas a sua intencionalidade, esta que se percebe em Bruno Tolentino. O que é que havíamos perdido na era da ditadura concretista? A noção de que fazer versos é mais do que distribuir no espaço alguns truques espertos. Ut pictura poesis, mas sempre sabendo que a linguagem do verso é o verbo.
Vai lá, Bruno! Na lógica do tempo, até breve!
III-165
Ó Via Láctea, ó luminosa irmã — segundo
Apollinaire — dos fios brancos da água vã,
a água furtiva que visita o chão do mundo
e vai-se evaporando também, ó minha irmã
mais ancestral, mais nebulosa, ó vaga lã
dos vãos novelos em que eu ando, um moribundo
no intemporal, sinal apenas de que o fundo
de tudo e de mim mesmo é a solidão pagã
da alma febril que se evapora e historiciza,
ó ampliação de Alexandria, ó via branca
e tenebrosa, é tudo a rosa que se arranca,
pétala a pétala, às profanações da cinza,
ó Via Láctea, ó minha irmã que pões a tranca
da imensidão no coração do que agoniza…
POSTS PUBLICADOS NO DIA 27 DE JUNHO
“Bruno Tolentino”
Morreu hoje de manhã, aos 66 anos, no Hospital Emílio Ribas, em São Paulo, o poeta Bruno Tolentino. Pior para todos nós. Pior para o Brasil. Anteontem, lembrei aqui uma das muitas falsetas que a impostura lhe aprontou: em 1994, ele desancou uma tradução de um poema de Hart Crane feita por Augusto de Campos. Em resposta, fizeram um abaixo-assinado. Até a Gal Costa e a Marilena Chaui assinaram. Não convidaram o Chacrinha porque ele já havia morrido. Falarei mais de Bruno ao longo do dia e da importância de sua obra. Havia muito, desde a morte de Mário Faustino (1962), de quem era amigo, era um poeta solitário, vivendo de e em muitos exílios, sem ninguém que pudesse com ele emular, nem mesmo ombrear.Há exatamente um ano, num 27 de junho como este, Bruno lançou aquela que é, no que respeita à produção poética, a sua maior obra: A Imitação do Amanhecer, um conjunto de 537 sonetos alexandrinos, que podem ser lidos individualmente. No conjunto, formam uma narrativa, um romance. Bruno me convidou para um bate-papo na livraria Fnac: também em prosa, era douto, divertido, original. Posso estar enganado, mas acho que os jornais não registraram uma linha. Ou o fizeram com tal discrição, que é impossível lembrar. Ele fora banido também da academia. Bruno podia ser um pouco humilhante — e até intimidador às vezes — em várias línguas. Menos para quem era capaz de ser generoso consigo mesmo para aprender. E então ele era de uma gentileza extrema.Eu era seu amigo. Trabalhamos juntos. Ele sempre teve comigo uma lhaneza que talvez eu nem merecesse. Num tom entre amistoso e galhofeiro, chamava-me, às vezes, como a outros mais jovens do que ele, “filhinho”. Vivi dias felizes tendo-o como colega de redação nas revistas BRAVO! e República. Em tudo, um homem invulgar. Era a única pessoa que eu permitia postar-se ao lado do micro enquanto eu escrevia um texto. Com olhos de uma agilidade infantil, antecipava-se, às vezes, às palavras. E lá vinha: “Filhinho, por que a gente (sic) não escreve tal coisa?”. A gente? Bruno vivia dentro de muitos textos. Eles eram de todos e de ninguém.Estou triste, devastado por sua morte, com a sensação, comum nesses casos, mas incomum quando se trata de Bruno Tolentino, de que eu poderia ter aprendido ainda mais, de que talvez eu tenha falado demais e ouvido de menos. Bruno era genial, contraditório, fabuloso, no sentido mesmo da palavra. Sou, como sabem, aborrecidamente lógico, o que vale para os amigos, que acatam o defeito, e para os inimigos, que, às vezes, se enfurecem. Muitas vezes, eu o flagrei no que, para mim, era uma contradição inelutável. Apontava-a, como é do meu temperamento: “Não, não, filhinho, você não entendeu”. E a sua resposta saía então da literatura, da sua cultura imensa, de uma certa realidade mágica onde vivia o poeta Bruno Tolentino. Eu, terreno demais, dava-me então por vencido.Bruno fez um bem enorme à literatura e a seus amigos e, no pouco de mal que pode ter praticado, não atingiu ninguém, a não ser a si mesmo. E até isso era parte de sua obra. Foi, a meu ver, o último representante de um país que poderia ter sido. E que não foi e não será porque a política — também as políticas culturais — se amesquinha no populismo rasteiro, na apologia da ignorância, da pequenez. Bruno, ao lado de Faustino, morto tantos anos antes, tinha sede do épico.O velório está sendo realizado no Cemitério Santíssimo Sacramento — Av. Dr. Arnaldo, 1.200, em São Paulo. Seu corpo será enterrado amanhã, às 9h. Os que vão morrer o saúdam, Bruno Tolentino.
Soneto 1-94
Bruno Tolentino ganhou o Prêmio Jabuti, em 1995, pelo livro As Horas de Katharina e, em 2005, por O Mundo como Idéia. É finalista neste ano com A Imitação do Amanhecer.
São 537 sonetos, divididos em três partes, que compõem uma narrativa. Um jovem inglês, recém-saído do que aqui é o ensino médio, mete-se numa expedição no Oriente, que tem como ponto de ancoragem a cidade de Alexandria. Morre, e seu corpo é embalsamado. O judeu Daniel, responsável por devolvê-lo à família, apaixona-se por aquela imagem sem vida e vaga com ela por anos seguidos.
É o fio narrativo que leva Tolentino a refletir sobre o amor, a morte, a divindade, a religião, o erotismo e a recusa em poemas escritos ao longo de 25 anos, entre 1979 e 2004. Como disse aqui outro dia, o livro já nasce póstumo. Segue o Soneto 1-94:
Nus como Deus os fez, os dois breves instantes
da epifania e do desejo contam apenas
de uma frágil tensão entre duas constantes:
o anfiteatro escuro e a rapidez das cenas.
Uma guirlanda improvisada, de açucenas,
de jasmins enfiados em fitas ou barbantes,
é circundada pela noite, e dois amantes
no mesmo laço, machucando-lhe as pequenas,
suaves pétalas de encontro ao coração,
vão aprendendo juntos uma antiga lição:
a aparição do ser, que um relâmpago trouxe,
é um aroma também, mas vem como se fosse
a terra de ninguém: para apartar e não
para unir ou durar, nenhum laço é tão doce.
Mais Bruno Tolentino
Onde anda agora a perfeição que andava unida
à fronte de um lavor sem mácula? Onde estás
agora, ó perfeição, diadema da vida,
que a harpa da luz tocava e não modula mais?
Alexandria, moradia do fugaz,
tu, roseiral de areia viva na descida
dos desertos ao mar, tu, perfume e ferida
e inconclusão – onde anda agora esse rapaz?
Breve parêntese entre a imagem e a semelhança,
mal te demoras neste mundo, ó perfeição,
que harmonizaste, como os corpos numa dança,
aquele par, metades duplas da ambição
de perpetuar o passageiro – ah, quem te alcança
agora, ó fluidez, ó fuga, ó deserção…?
O que vocês leram acima é o soneto nº 69 da primeira parte — As Epifanias — do livro A Imitação do Amanhecer, de Bruno Tolentino, publicado pela Editora Globo.
Lições de Bruno
Escrevi este post no dia 29 de junho do ano passado:
*
Vocês sabem o que é, em poesia, “enjambement”? Vou tentar sintetizar: é quando há uma quebra no verso; é quando ele termina, mas seu sentido se completa só no verso seguinte. Reparem neste trecho de um famoso soneto de Camões:
Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;
Não há ali o enjambement. Embora o conjunto da estrofe forme uma unidade e, claro, o sentido de cada verso se defina também pelo contexto, cada linha tem a sua unidade sintática. A despeito de assonâncias internas, a rima final é que marca o ritmo do poema. Agora vejam isto:
“Porque é impossível, como inútil, conceber
a comoção da vida inteira como apenas
um desbarate, certos fatos, certas cenas,
minuciosos como um lento alvorecer,
insistem em retornar-me assim, entre as pequenas
vinhetas do arlequim de luz que anda no ser.”
Percebam que há, sim, as rimas finais, a exemplo do trecho de Camões, mas a leitura do poema requer, em nome do sentido, que se evite a pausa ao fim de cada verso. O ritmo da leitura muda, e surge um novo e original encadeamento. A poesia se torna, assim, dotada, no mínimo, de duas músicas: a marcada pela rima final dos versos tomados em sua linearidade e a outra, que se obtém quando se busca o sentido no compasso da sintaxe. Por isso foi um recurso muito usado no Simbolismo, como todos devemos ter aprendido na escola. Afinal, buscava-se a poesia também como uma evocação.
Alguns poetas são mestres nessa arte. É o caso de Bruno Tolentino (autor dos versos acima), que acaba de lançar A Imitação do Amanhecer. Ao lado de Mário Faustino, é quem melhor soube — e, felizmente, sabe — usar o enjambement na poesia brasileira contemporânea. Na terça-feira, participei de um bate-papo com ele na livraria Fnac, em São Paulo. A sala lotada soube ouvir suas maravilhas em prosa. Abaixo, um dos 537 sonetos do livro:
Penso nos mármores caídos; na figura
do Antinoo sem nariz de Olímpia; nos dois braços
daquela Vênus que os perdeu e ainda os procura
de um patamar de escadaria; nos pedaços
sozinhos que ninguém consola; nos cansaços
do amor, da mão, da esmola… Penso na arquitetura,
essa efusão da pedra, seu triunfo e os espaços
que nos lega, vazios… Penso na noite escura
que a eterna Alexandria finge desconhecer
enquanto tira de uma perna um deus qualquer
que agonize por ela… Penso nela, o avestruz
que se recusa a vê-la como São João da Cruz
a descreve e desvela; penso na flor do ser,
tão bela quanto breve entre essa noite e a luz…
Chamei a atenção para um recurso técnico de que Bruno é mestre. Porque admiro o seu rigor. Mas, tão importante quanto a técnica, é observar que ele sempre teve o que dizer. Leiam A Imitação do Amanhecer. Requer, é verdade, algum esforço e, talvez, alguma pesquisa. Mas é certo que se ganha muito na trajetória.
POST PUBLICADO NO DIA 25 DE JUNHO DE 2006
Onde anda agora a perfeição que andava unidaà fronte de um lavor sem mácula? Onde estásagora, ó perfeição, diadema da vida,que a harpa da luz tocava e não modula mais?Alexandria, moradia do fugaz,tu, roseiral de areia viva na descidados desertos ao mar, tu, perfume e feridae inconclusão – onde anda agora esse rapaz?Breve parêntese entre a imagem e a semelhança,mal te demoras neste mundo, ó perfeição,que harmonizaste, como os corpos numa dança,aquele par, metades duplas da ambiçãode perpetuar o passageiro – ah, quem te alcançaagora, ó fluidez, ó fuga, ó deserção…?O que vocês leram acima é o soneto nº 69 da primeira parte — As Epifanias — do livro A Imitação do Amanhecer, de Bruno Tolentino, publicado pela Editora Globo. Raramente se fez algo de tal grandeza na poesia brasileira. E vai aqui a minha timidez. A vontade é mesmo escrever: “nunca”. Tolentino, avalio, é o maior poeta vivo da língua portuguesa e um dos grandes de qualquer tempo. Trata-se de 537 sonetos, divididos em três partes, que, não obstante, compõem uma unidade e uma narrativa. Na próxima terça, dia 27, acontece na livraria Fnac o lançamento da obra. Participarei de um bate-papo com o poeta, aberto ao público.