A coisa aperta para Lula? Chame-se Márcio Thomaz Bastos! Ele sempre tem uma boa idéia. No caso do mensalão, arquitetou a tese do caixa dois. Bastos e Dalmo de Abreu Dallari decidiram lançar um “contramanifesto” para responder ao Manifesto em Defesa da Democracia, que ultrapassou ontem à noite a marca de 50 mil signatários — aliás, o site estava fora do ar nesta madrugada… Alô, valentes! Resolvam isso aí.
Assinam o documento pró-Lula, entre outros, Celso Antonio Bandeira de Mello, constitucionalista e professor emérito da PUC-SP; Rogério Favreto, ex-secretário da Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça; Sérgio Renault, também ex-secretário da Reforma; Cezar Britto, ex-presidente do Conselho Federal da OAB; os presidentes de seccionais Wadih Damous (OAB-RJ), Homero Mafra, (OAB-ES), Jarbas Vasconcelos (OAB-PA) e Mario Macieira (OAB-MA).
Raramente tantas cabeças se reuniram para produzir um texto tão ruim, que segue em vermelho, com comentários meus em azul.
Carta ao Povo Brasileiro
Poderiam ter copiado Goffredo da Silva Telles, chamando o documento de “Carta aos Brasileiros”. Preferiram copiar Lula. Antes assim.
Em uma democracia, todo poder emana do povo, que o exerce diretamente ou pela mediação de seus representantes eleitos por um processo eleitoral justo e representativo.
É? Fiquei curioso pelo exercício direto. Como seria? Não sendo uma referência a plebiscitos e referendos — desdobramentos da democracia representativa —, então deve ser “estado da natureza” . Pensei em convocar John Locke para a conversa, mas acho melhor chamar o Thomas Hobbes. Qual é a tese, estrelados?
Em uma democracia, a manifestação do pensamento é livre. Em uma democracia as decisões populares são preservadas por instituições republicanas e isentas como o Judiciário, o Ministério Público, a imprensa livre, os movimentos populares, as organizações da sociedade civil, os sindicatos, dentre outras.
O que não é acaciano está errado. Judiciário e Ministério Público jamais podem aparecer como elementos coordenados, separados por vírgulas, junto com “sindicatos”, “movimentos Sociais”, dentre (sic) outras. A razão é simples. O Poder Judiciário e o Ministério Público atendem ao conjunto da sociedade; sindicatos e movimentos sociais, a parcelas dela. Os dois primeiros são órgãos do Estado; os outros são organismos de pressão — legítimos, sim, mas que não operam na esfera da neutralidade do ente estatal. Assinam esse texto nada menos do que 64 ditos “juristas”, muitos deles, como se vê, ligados à OAB. Se aqueles que deveriam pensar o direito operam nessa faixa de primitivismo intelectual, estamos feitos.
Estes valores democráticos, consagrados na Constituição da República de 1988, foram preservados e consolidados pelo atual governo.
Para que tivessem sido “consolidados”, forçoso seria que se apontassem ações suplementares e complementares de fortalecimento da representação ou dos direitos individuais. Nenhum dos doutores conseguiria fazê-lo. Para que tivessem sido preservados, forçoso seria que o país não tivesse se tornado o paraíso de violadores de sigilos bancário, fiscal e de comunicação.
Governo que jamais transigiu com o autoritarismo. Governo que não se deixou seduzir pela popularidade a ponto de macular as instituições democráticas. Governo cujo Presidente deixa seu cargo com 80% de aprovação popular sem tentar alterar casuisticamente a Constituição para buscar um novo mandato. Governo que sempre escolheu para Chefe do Ministério Público Federal o primeiro de uma lista tríplice elaborada pela categoria e não alguém de seu convívio ou conveniência. Governo que estruturou a polícia federal, a Defensoria Pública, que apoiou a criação do Conselho Nacional de Justiça e a ampliação da democratização das instituições judiciais.
Os doutores esperam que sejamos gratos a Lula quando ele decide seguir a Constituição e que não o censuremos quando abusa de suas prerrogativas e sobe em palanque para satanizar os que lhe fazem oposição. Como resposta ao Manifesto em Defesa da Democracia, o texto é fraco. Falta agora que os sábios contestem o fato de que fundos de pensão se transformaram em bunkers para fazer dossiês contra adversários do regime; falta agora que os sábios contestem o fato de que a Receita Federal foi usada como instrumento para perseguir adversários; falta agora que os sábios contestem o aparelhamento do estado por um partido.
Nos últimos anos, com vigor, a liberdade de manifestação de idéias fluiu no País. Não houve um ato sequer do governo que limitasse a expressão do pensamento em sua plenitude.
O assédio à liberdade de imprensa se dá em três frentes. Na legal, já houve a tentativa de criar o Conselho Federal de Jornalismo, as propostas de censura do Programa Nacional de Direitos Humanos e as de “controle social da mídia” de três conferências — que devem ser enviadas ao Congresso na forma de projetos de lei. Na frente econômica, há a utilização descarada da verba oficial de propaganda (incluindo a das estatais) para premiar aliados ideológicos e “castigar” desafetos. Na frente que eu chamaria ideológica, há o financiamento e manipulação descarada de uma rede suja na Internet, destinada a difamar os que são identificados como “inimigos do governo”.
Não se pode cunhar de autoritário um governo por fazer criticas a setores da imprensa ou a seus adversários, já que a própria crítica é direito de qualquer cidadão, inclusive do Presidente da República.
É, vênia máxima a tantos nomes estrelados, uma vigarice intelectual afirmar que se está tentando impedir o presidente de fazer críticas a seus adversários. Com efeito, ele um cidadão como qualquer outro, mas nenhum outro cidadão é presidente da República. Os senhores entenderam a diferença ou querem que eu desenhe? Se Lula tiver um diarréia num palanque, doutores, o cidadão e o presidente padecerão a mesma agrura. Da mesma sorte, as palavras que profere saem tanto da boca do militante como da do presidente da República. Que seja eu, um jornalista, a desconstruir com frase tão elementar, como a que vai em destaque, o raciocínio de “juristas”, bem, isso nem diz tanto das minhas qualidades, mas fala muito das qualidades do manifesto…
Estamos às vésperas das eleições para Presidente da República, dentre outros cargos. Eleições que concretizam os preceitos da democracia, sendo salutar que o processo eleitoral conte com a participação de todos.
Em primeiro lugar, peçam ao redator que estude o emprego da palavra “dentre”. Em segundo, ninguém jamais cobrou que o presidente não participasse do processo eleitoral. Ao contrário: deve participar sem esquecer que tem também a função de um magistrado. Ou ignoram os doutores que ele também é presidente dos líderes da oposição e dos eleitores de oposição?
Mas é lamentável que se queira negar ao Presidente da República o direito de, como cidadão, opinar, apoiar, manifestar-se sobre as próximas eleições. O direito de expressão é sagrado para todos – imprensa, oposição, e qualquer cidadão. O Presidente da República, como qualquer cidadão, possui o direito de participar do processo político-eleitoral e, igualmente como qualquer cidadão, encontra-se submetido à jurisdição eleitoral. Não se vêem atentados à Constituição, tampouco às instituições, que exercem com liberdade a plenitude de suas atribuições.
Uma ova! Fica bom assim? O que um presidente da República não pode é, com o “broche presidencial” na lapela, chamar um candidato de oposição de “líder da turma do contra”, afirmando que ele torce contra o Brasil. Isso é linguagem fascistóide. O que um presidente da República não pode é dizer que seus aliados são “a opinião pública”. O que um presidente da República não pode é chamar de partidárias as reportagens que não são de seu agrado — muito especialmente aquelas que resultam na demissão de ministros de estado. Os doutores sentem falta de atentados à Constituição? Violação de sigilo bancário atenta contra a Constituição, mesmo quando a vítima é um caseiro e não um doutor. Violação de sigilo fiscal atenta contra a Constituição, mesmo quando as vítimas são da oposição. Tentar mecanismos oblíquos de censura atenta contra a Constituição.
Como disse Goffredo em sua célebre Carta: “Ao povo é que compete tomar a decisão política fundamental, que irá determinar os lineamentos da paisagem jurídica que se deseja viver”. Deixemos, pois, o povo tomar a decisão dentro de um processo eleitoral legítimo, dentro de um civilizado embate de idéias, sem desqualificações açodadas, e com a participação de todos os brasileiros.
A referência à “Carta aos Brasileiros”, de Goffredo da Silva Telles, é uma trapaça intelectual. Suas palavras, ditas num regime ditatorial, pediam a volta da democracia e do estado de direito. A democracia está aí, e há aqueles que não se conformam com ela — justamente os violadores da Constituição. Os doutores não podem e não devem confundir urna com tribunal. Ainda que as forças do governo vençam as próximas eleições, o resultado não absolve crimes, muito especialmente aqueles cometidos na sala quase contígua à do presidente da República.
Agora entendo o silêncio de muitos dos “juristas” que assinam o “contramanifesto”. Eles não conseguiam ligar o nome à coisa; não percebiam violação da Constituição quando diante de uma. Estavam mais ocupados em proteger o governo e o presidente de si mesmos. Tentem outro manifesto. Eu sei que a causa é ruim, mas não é possível que vocês não possam fazer melhor do que isso.