Chatfish: quando a IA encontra os apps de relacionamento
Se passar por outra pessoa (o catfish) virou coisa do passado. A moda agora é terceirizar a paquera, usando respostas do ChatGPT nas conversas

Repare que no título acima não usei a palavra CATFISH, palavra do inglês que descreve a prática de se passar por outra pessoa na internet com intenção de conquistar alguém. Tem um agá ali, de CHAT, como em GPT. E é disso que estamos falando: de terceirizar a conversa para inteligências artificiais nos apps de relacionamento. Estamos na era do chatfish.
Mais do que a letra extra, o chatfish tem como diferença o fato de que a identidade costuma ser verdadeira – a ideia é que haja um encontro cara a cara, afinal de contas. O conteúdo das interações, no entanto, vem das IAs. Isso tudo sem informar quem está do outro lado que a tecnologia entrou na jogada e o papo a dois não é exatamente a dois.
Entre os adeptos do chatfishing (aprendi a palavra numa reportagem do britânico Guardian, no último fim de semana) há diferentes motivações. Alguns recorrem às IAs porque sofrem de alguma modalidade de ansiedade social, e li sobre pessoas que estão no espectro autista que se beneficiaram desse cupido tech. Beleza.
Descontados esses casos, considero sintomático que a pressão por performar com excelência tenha chegado tão longe. Vivemos num mundo tão metrificado, com uma pressão por performance tão intensa que até mesmo algo que devia ser chance de conexão pessoal virou alvo de otimização. Todo dia, o dia inteiro, martelam na cabeça da gente que é preciso ser nossa melhor versão, então é quase um passo óbvio recorrer à tecnologia para parecer mais interessante nos aplicativos de relacionamento.
É possível argumentar que as pessoas querem apenas aumentar suas chances de sucesso, conseguir companhia para uma noite casual. Recorrer a uma IA ao longo da interação não parece nada de alarmante, desde que seja algo pontual. Agora fazer isso com TODA a conversa me parece mais complicado. O que acontece quando você encontra a pessoa e sua versão ao vivo destoa da persona das mensagens? O risco de rejeição cara a cara não pode ser prejudicial também? Aliás, já que muitos chatfishers querem evitar perder tempo, terceirizar a conversa não periga levar justamente a isso?
Ou talvez eu seja apenas um tiozão anacrônico, reclamando do uso de IA na pegação do mesmo modo que meus avós diziam que meu videogame estragaria a televisão. Quem sabe o novo normal contemple encontros entre duas pessoas que fingem não ver discrepâncias entre a versão escrita e a versão ao vivo uma da outra?
Uma IA ainda vai escolher seu próximo parceiro
Num mundo em que os modelos de IA foram gradualmente inseridos em diferentes esferas da convivência humana, não tardaria até que fossem usados na busca por parceiros. Existem diferentes modalidades: a mais básica consiste em pedir que alguma ferramenta analise seu perfil e proponha alterações que aumentem as chances de sucesso, recurso disponível em diversos aplicativos mundo afora.
Tem também os chamados “namorados virtuais”, cujo nome é autoexplicativo. Nesse caso, o filme Her, estrelado em 2013 por Joaquin Phoenix e Scarlett Johansson, foi praticamente um adivinho: as pessoas passaram a manter diálogos profundos e se envolver com as próprias IAs, conferindo a elas uma humanidade inexistente. Nessa seara, surgiram chatbots criados especificamente para interações de cunho erótico, aliás.
No meio do caminho entre esses extremos, aparece a IA que funciona como uma espécie de concierge. Seja para tornar o match mais eficaz, usando dados de cada usuário, ou para apontar se as interações podem ser consideradas sinal de comportamento abusivo iminente. E mesmo para dar dicas relacionadas ao planejamento dos encontros pessoais.
Há, ainda, um cenário que se desenha – e esse eu acho especialmente triste. Hoje se fala muito sobre agentes de IA, que são configurados para tomar conta de determinadas tarefas. Já entendeu onde quero chegar? Sim, existe a possibilidade de um futuro bem próximo em que o seu agente conversa com o agente da outra pessoa, e aí vocês só entram em cena de verdade depois que a conversa engrenou. Deixo a pergunta a vocês, leitores e leitoras: qual é a graça disso? Por favor, respondam a este quarentão aqui, porque dessa vez não vou dar conta de acompanhar a inovação, não.