‘Sofri abuso e saí da igreja’, diz Edson Cordeiro sobre passado evangélico
Cantor que fez sucesso nos anos 1990 com baladas dançantes lança 'Tango do Cordeiro', faixa inspirada em um episódio de perseguição religiosa
Nos anos 1990, a música brasileira foi sacudida por dois extremos. De um lado o indefectível axé music. Do outro, a música pop e dançante de Edson Cordeiro, hoje aos 56 anos. Contra-tenor, o artista ganhou notoriedade ao interpretar A Rainha da Noite, clássico da ópera, em uma participação com Cássia Eller. Seus agudos extremamente afinados monopolizavam as rádios. Homossexual assumido, Edson fazia questão de levar para os programas de TV seus dois backing vocals que se apresentavam em trajes sumários, num contraponto às bailarinas de axé, igualmente desnudas. “A TV não entendia que havia um público gay ou feminino que queria ver o corpo masculino”, diz Edson a VEJA.
Em 1997, Edson chocou o Brasil ao lançar Clubbing, álbum só com baladas eletrônicas — entre elas uma versão dançante de Ave Maria. Ele foi perseguido por grupos religiosos e Rita Lee saiu em sua defesa — a cantora publicou uma crônica cujo título Edson lembra até hoje: “Não sacrifiquem o Cordeiro”. A frase serviu de inspiração para Zeca Baleiro compor a nova canção inédita de Edson, Tango do Cordeiro, que traz na letra aquela história: “Dou-me em oferenda / Não em sacrifício… Quero cantar minha canção / Com fúria e felicidade (Com fúria e eletricidade)”, diz um dos trechos.
Há mais de dez anos, Cordeiro vive na Alemanha com o marido. O artista agora quer focar em novelas e diz que está aberto a convites, especialmente para comédias. Confira a seguir os principais trechos da conversa:
Seus discos vendiam como água nos anos 1990. Dizem que heterossexuais compravam seus discos e escondiam em sacolas por vergonha. É verdade essa história? Ouvi essa história de um empresário. Meus discos eram purpurinas na veia, né? Principalmente na televisão. Eu chegava com meus backing vocals bonitões e as câmeras não sabiam como focar. Era uma época que Carla Pérez bombava na TV e eles iam direto na bunda da mulher. Mas como fazer isso com o homem? A TV não entendia que havia um público gay ou feminino que queria ver o corpo masculino e não só a sexualidade da mulher. Já que é para expor, vamos expor todo mundo. Foi um choque. Eu nunca segmentei meu público. Sempre levantei a bandeira, sempre fui ativista, mas meu discurso era amplo. Eu não fui um ativista que canta e sim um cantor que faz ativismo.
Sua nova música, Tango do Cordeiro, escrita por Zeca Baleiro, foi inspirada em uma crônica de Rita Lee, que o defendeu nos anos 1990, após sua polêmica versão de Ave Maria em ritmo de música eletrônica. Como enxerga hoje aquele episódio? Adorei a música do Zeca. É um tango. E tango é tão dramático, né? Tango é comigo. Eu visto bem esse figurino porque vim do teatro, eu sou latino e represento essa latinidade. Quando lancei Ave Maria, fui massacrado e Rita escreveu uma crônica linda cujo título era: “Não sacrifiquem o Cordeiro”. No texto ela dizia que, em vez de aproximarem as pessoas do sagrado, atitudes como aquelas distanciavam ainda mais. Na época, eu enfrentava uma perseguição religiosa e também uma antipatia da imprensa. O título do texto da Rita ficou tatuado na minha alma.
Você foi criado em uma família evangélica e era bastante religioso. Hoje, se considera ateu. O que aconteceu? Aprendi a cantar com louvores. Mas sofri abuso e saí. Sofri abuso justamente no lugar onde eu me sentia mais seguro. Achava que seria abraçado pela igreja numa época em que eu ainda nem me reconhecia enquanto homossexual. Eu já tinha, porém, essa androgenia, que não era bem aceita. Não era certo ter a voz e o corpo que eu tinha. Até que aconteceu. Sofri abuso quando tinha uns 14 ou 15 anos e era muito inocente. Eu era completamente fundamentalista no jeito de pensar Deus e religião e sofri com isso.
Acredita que ajudou a popularizar a música clássica no Brasil? Com certeza. Conheço muitos cantores líricos da nova geração. Alguns com os quais já tive o prazer de cantar, me disseram que começaram a cantar por minha causa. Mas sou um cantor popular, nunca fiz uma montagem de ópera na minha vida. Adoro o lado erudito da música, mas não mereço ser chamado de cantor lírico porque eu não tenho essa formação. Mas, é inegável que as pessoas quando me ouviram cantando Rainha da Noite com Cássia Eller queriam saber que grito era aquele que eu estava dando. E foram entender a música erudita.
Você é contra-tenor, uma voz masculina aguda que se assemelha à voz feminina. Como explicava esse tom para as pessoas nos anos 1990? Por meio da ideia de androgenia, de trocar os papéis de gênero. Eu ouvia que eu não cantava igual homem. Quem determinou isso? Desde aquela época eu já brigava com essa história. O que é a androgenia? É um homem de barba que coloca uma peruca, maquiagem e fica maravilhosa. Aí as pessoas entendiam. No rock, David Bowie fez muito isso.
Como é a vida na Alemanha, onde vive há mais de dez anos? Eu adoro. Eu só trabalho porque preciso, porque do contrário, eu seria um dono de casa muito feliz. Encontrei o homem da minha vida. É um dos mais belos seres humanos que eu não sabia que poderia existir. Achei que amor não existia e que gays só queriam sexo. Sou muito “louca” lá no palco. Quando saio dele, eu quero uma vida tranquila. Por que não ter o direito de ser dono de casa? Gosto realmente de cuidar das minhas plantinhas. Sou muito tranquilo. Já tenho 56 anos e já faz tempo que tenho essa vida cigana. Quero sossegar.
Além da música, tem planos para fazer outros trabalhos no Brasil? Quero fazer novela. Fui convidado a fazer uma peça de teatro importantíssima esse ano, só que eu não tive como organizar minha agenda, infelizmente. Se precisarem de um ator que cante, eu cantarei também. Agora, eu sou um bom ator. E comédia ainda é melhor. Posso fazer de tudo.
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