Unidos pelo casamento e parceria musical desde 1975, Rita Lee e Roberto de Carvalho decidiram dar um tempo como casal — e também das grandes turnês — no início dos anos 1990. Rita “entrou numas” de investir na bossa nova e em shows intimistas só com voz e violão. Roberto se embrenhou numa jornada de autoconhecimento, com longas viagens místicas pelo mundo afora. Mas a paixão e, claro, a alma roqueira de ambos jamais arrefeceram, e eles se reuniram de novo quando surgiu a chance de realizar um sonho geracional: abrir os shows do grupo britânico Rolling Stones no Brasil, em 1995.
Para a missão, Rita convocou Roberto a se unir a ela no palco mais uma vez — e assim surgiu A Marca da Zorra, show que transcendeu a temporada com os Stones para se tornar a maior turnê de Rita desde sua explosão nacional com Flerte Fatal, nos anos 1980. O repertório privilegiava os rocks mais famosos da cantora desde os Mutantes, passando pela banda Tutti Frutti, e até desaguar nos hits antológicos criados em dupla com Roberto — todos tocados com arranjos mais pesados. O show deu origem a um álbum gravado ao vivo no Canecão, no Rio de Janeiro. Fora de catálogo há anos, A Marca da Zorra acaba de chegar aos serviços de streaming, e tem relançamento em vinil previsto para o ano que vem, pela Universal Music. “Mesmo durante aquele período de distanciamento, estávamos em contato permanente, diário, e até fizemos viagens juntos”, relembrou Roberto a VEJA (leia abaixo).
Antenada com os humores daquele momento, Rita percebeu que, ao contrário do pop dos 1980, havia uma demanda por guitarras distorcidas — e Roberto, cujos atributos como instrumentista sempre foram eclipsados pelo brilho e carisma natural da esposa, poderia enfim demonstrar seu talento nos solos e arranjos. No espetáculo, a cantora investiu na teatralidade ao montar um cenário grandioso, empreender trocas de roupas e deixar de lado seus “rockarnavais” — maneira como se referia aos hits Chega Mais, Banho de Espuma e Lança Perfume. “Eu lá querendo provar que nem só de lanças-perfumes vive uma compositora de sucesso”, disparou ela em 2016, na sua autobiografia.
O relançamento faz parte de um projeto maior que Roberto assumiu após a morte de Rita, em maio deste ano. O músico e viúvo se tornou, inevitavelmente, guardião do legado artístico da roqueira. No momento, está revirando seus baús em busca de material inédito. “Ano que vem sai um disco ao vivo gravado fora do Brasil. Mas é surpresa”, antecipa ele. Na vida pessoal, Roberto sinaliza que as coisas começam a entrar nos trilhos apesar do longo e doloroso processo de luto. “Só de falar dela, lágrimas já começam a brotar”, afirma.
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Roberto deu mostra dessa sutil mudança de astral no sábado 2, ao fazer uma aparição especial na apresentação de Marisa Monte no festival Primavera Sound, em São Paulo. Ao cantar com Marisa em tributo a Rita, quebrou um jejum de dez anos longe dos palcos, desde que ambos se aposentaram, em 2013. “Jamais imaginava voltar aos shows”, revela. Segundo o guitarrista, o próximo passo será ainda mais ousado. Ele pretende voltar a tocar com mais regularidade, participando da turnê que o filho Beto Lee vem fazendo pelo país em homenagem à mãe, ao lado de músicos como o baixista Lee Marcucci, que compôs várias canções com Rita. Aos 71 anos, Roberto prova que a zorra — assim como a vida — continua.
“Nosso amor é para sempre”
Roberto de Carvalho, 71 anos, fala de disco ao vivo com Rita Lee e da volta aos palcos após a morte da cantora:
O senhor e Rita estavam afastados antes de A Marca da Zorra. O que motivou a separação? Estávamos numa época de transformação pessoal. Queríamos fazer coisas diferentes. Entrei num período de longas viagens, pelo mundo afora e para dentro: místicas, de estudos, enfim, uma jornada sabática.
O disco surgiu após Rita e o senhor abrirem o show dos Rolling Stones. Como foi a experiência? Confesso que era mais divertido só ver os Stones do que participar. Menos tensão. Mas foi um barato ver Mick Jagger ali do lado do palco. Rita adorou. Veio a vontade de fazer um show novo no receituário deles, com uma coleção de hits.
Após dez anos longe dos palcos, o senhor fez uma participação no show de Marisa Monte. Vai voltar a tocar? Foi um pequeno milagre que só poderia ter acontecido com Marisa, uma artista de quem eu e Rita sempre fomos grandes admiradores. Na verdade, eu imaginava nunca mais subir num palco. O coração bateu mais forte. Me prepararei psicologicamente e tirei os instrumentos do armário. Quero fazer algo com o Beto, meu filho, mas quero que seja especial.
Como o senhor está hoje? O luto é uma batalha que não vai acabar nunca. Vou me acostumando a me relacionar com a presença impresente da pessoa que mais amei e admirei na vida. Sinto a Rita junto a mim o tempo todo. Nossa simbiose permanecerá intacta. Nosso amor é de uma intensidade atômica. É para sempre.
Publicado em VEJA de 15 de dezembro de 2023, edição nº 2872
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