Exclusivo: As revelações dos cadernos pessoais de Elza Soares
Material inédito guardado pela neta e pelo empresário revela uma artista conectada com a atualidade e em busca de seu lugar como compositora
Em 1962, aos 32 anos, Elza Soares estava no auge de sua popularidade. Não à toa, ela foi convidada para ir ao Chile como madrinha da seleção brasileira de futebol na Copa do Mundo em que o país se sagrou bicampeão. Foi ali, entre uma partida e outra, que ela engatou romance com Garrincha. O jogador já não convivia com a esposa, Nair Marques, com quem teve oito filhas — mas, na sociedade conservadora da época, a notícia de que um dos craques da seleção estava tendo um caso extraconjugal se tornou um escândalo. Elza foi injustamente tachada como “destruidora de lares” e massacrada na imprensa. Produtores musicais resolveram se aproveitar do burburinho e, em 1965, a convenceram a gravar a música Eu Sou a Outra, composta por Ricardo Galeno. Apesar de incomodada com a letra, Elza cedeu, pois estava presa a um contrato draconiano que dava muita força à sua gravadora, a Odeon. O que era para ser um estouro na visão dos mandachuvas foi lido pelo público como uma confissão de culpa e comprometeu a carreira da artista por muitos anos.
Publicamente, Elza só conseguiu se desvencilhar para valer daquela imagem em 2015, quando lançou A Mulher do Fim do Mundo. Àquela altura, a produção de seus discos e clipes tomou um banho de modernidade, e ela passou a dar vazão a letras contundentes sobre racismo, machismo e outras mazelas sociais do país. Mais que isso, Elza iniciou então uma batalha pessoal que só ganharia expressão plena às vésperas de sua morte, no ano passado, aos 91 anos: vista como grande intérprete, mas fadada a ter seu repertório definido por produtores e gravadoras (um universo, claro, todo masculino), ela desejava se impor como compositora. Uma série de cadernos inéditos guardados por seu empresário, Pedro Loureiro, e pela neta, Vanessa Soares, ilumina esse esforço. “Elza era, sim, compositora, mas não foi levada a sério pelos produtores”, diz Loureiro. VEJA teve acesso aos escritos — e trechos reproduzidos na reportagem atestam que a artista não só vinha compondo letras em ritmo célere: às portas dos 90 anos, ela exibia uma impressionante inquietude política e criativa (leia abaixo).
À primeira vista, os cadernos de Elza parecem anotações triviais sobre a vida cotidiana, como listas de compras, reproduções de letras de músicas em inglês, aforismos e citações de personalidades como Martin Luther King. Uma leitura mais apurada, no entanto, revela uma riqueza poética em textos sobre resiliência, vontade de viver e uma aguçada visão de mundo. Não por acaso, foi nesses textos que a cantora buscou inspiração para compor as músicas de seu último álbum, No Tempo da Intolerância, lançado postumamente neste ano. O trabalho foi o primeiro de sua carreira que privilegiou a Elza letrista: o repertório contém mais de 70% de composições dela mesma. “Elza era muito poética. Ela escrevia rimando, como dá para ver na música Pra Ver Se Melhora”, lembra Loureiro. Quando cantava versos de terceiros, essa Elza da maturidade fazia questão de escolher músicas afinadas com sua pauta pessoal. “As faixas que não foram compostas por ela são de mulheres fortes como Rita Lee, Pitty e Dona Ivone Lara”, diz o produtor Rafael Ramos.
Elza usava as páginas também para desabafar em frases de autoria desconhecida. “Por mais inteligente que alguém possa ser, se não for humilde, o seu melhor se perde na arrogância”, escreve. O jeito realista de encarar a vida condiz com o que ela passou em sua biografia. Elza se revelou uma figura de fibra logo em sua entrada em cena. Num concurso de rádio conduzido por Ary Barroso, em 1953, o célebre compositor perguntou de que planeta a menina com roupas amarfanhadas vinha. Moradora de uma favela, ela não titubeou e disse: “Planeta fome”. Na relação com Garrincha, dizia ter feito tudo para livrar o craque do alcoolismo — mas, ao ser agredida por ele, botou-o para fora de casa em definitivo.
Woman At The End Of The World [Disco de Vinil]
Se nunca deixou de ser uma fera, é fato que Elza teve de ceder, na condução da carreira, aos ditames que se esperavam de uma artista feminina na época — ainda mais sendo de origem pobre e negra. É simbólico que sua virada definitiva tenha ocorrido na maturidade, quando expôs sua visão combativa e enfim conseguiu escolher o repertório dos discos. Vieram, então, os contundentes Deus É Mulher (2018) e Planeta Fome (2019), com músicas sobre feminismo, racismo e desigualdade, alçando a artista, aos 80, como uma das vozes mais importantes da música nacional. Os cadernos são um testemunho revelador desse processo. O empresário Loureiro conta haver mais músicas inéditas de Elza guardadas, mas sem previsão de lançamento — e apenas com letra e melodia, sem a voz dela. “Não sei se vamos gravar essas músicas com outras cantoras. Elza tem que me instruir lá de cima”, afirma. Já os cadernos deverão ser tema de uma exposição no futuro. Que o baú da diva seja do tamanho do seu talento.
Publicado em VEJA de 1º de setembro de 2023, edição nº 2857
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