Da janelinha do avião, o jovem Paul McCartney, então com 21 anos, viu um funcionário do aeroporto de Miami se esforçando para proteger os ouvidos do barulho ao redor. Os elevados decibéis, tão característicos nesses lugares, daquela vez não vinham das turbinas, e sim dos estridentes gritos das fãs apinhadas na pista e nos portões de embarque. Corria o ano de 1964 e os Beatles faziam a última escala nos Estados Unidos de uma viagem que marcaria o início da beatlemania. Ao descer da aeronave, Paul sacou sua Pentax e registrou o flagrante de uma moça que, aos berros, tentava escapar do forte esquema de segurança. Vencida a multidão, ele seguiu registrando de dentro do carro os batedores que os escoltavam rumo ao hotel — e mais fãs correndo atrás. Os colegas de banda também são alvo de suas lentes indiscretas, de um cansado George Harrison que dormia no banco de trás e à rara cena de John Lennon usando óculos de lentes grossas (que odiava mostrar publicamente). Cerca de 275 imagens tão reveladoras e fascinantes quanto essas compõem 1964 – Os Olhos do Furacão, livro com lançamento mundial nesta terça-feira, 13.
Preservadas em sua coleção pessoal e dadas como perdidas por décadas, as fotos do baú de Paul são compartilhadas apenas agora, quase sessenta anos depois. O acervo também será exibido entre 28 de junho e 1º de outubro na National Portrait Gallery, em Londres — responsável pelo restauro e curadoria das relíquias. “Sempre soube, nos recônditos da minha mente, que havia tirado algumas fotos na década de 60. Nunca me esforcei para localizar essa coleção”, explica McCartney no texto de apresentação do livro. “Não escondi meu deleite ao ver, pela primeira vez após tantas décadas, essas imagens enfim localizadas”, completa.
Ao longo de mais de sessenta anos, incontáveis fotografias dos Beatles foram divulgadas na imprensa, mas pouquíssimas revelavam de maneira informal a verdadeira intimidade do grupo. Mais raras ainda foram as imagens que captaram os bastidores da histórica turnê pela Europa e Estados Unidos. Entre dezembro 1963 e fevereiro de 1964, o quarteto tocou em curto espaço de tempo em sua Liverpool de origem, Londres, Paris, Nova York, Washington, Miami e cidades do Canadá. Mais que iniciar o culto global aos Beatles, o evento marcou o nascimento das grandes turnês do rock — e demarcou o surgimento daquilo que hoje se reconhece como cultura pop. Vista de fora, a gênese da beatlemania é bem conhecida — inclusive de modo estereotipado no filme Os Reis do Iê, Iê, Iê (1964). Mas só um círculo restrito de pessoas testemunhou o fenômeno de perto — ninguém, claro, da posição privilegiada de McCartney.
Aos 80 anos, o roqueiro jamais escreveu uma autobiografia. O mais próximo que chegara perto disso foi com o livro As Letras, lançado em 2021, em que destrinchava e refletia sobre a origem de 154 de suas composições. Agora, ele soma àquelas lembranças a preciosa memorabilia de Os Olhos do Furacão. O ex-beatle compara as imagens a um diário que vai “criando um panorama do qual nunca vou me esquecer, pelo resto da minha vida”. Como na sequência de autorretratos diante do espelho que abrem esta reportagem — indícios de que ele foi, quem diria, um vovô das selfies.
As primeiras fotos, ainda em Liverpool, são em preto e branco e mostram o grupo no estúdio e no backstage de shows. Já na fase londrina, há uma rara vista do quarto de Paul, feita do sótão de Jane Asher, sua primeira namorada — no local, ele escreveu a música I’m Looking Through You. No período, os quatro músicos aprenderam a fazer poses certeiras para caber nas colunas dos jornais, como naquela em que encaixam suas cabeças uma em cima da outra para proporcionar uma imagem vertical. É curioso, ainda, ver os registros que Paul fazia dos fotógrafos que acompanhavam a banda. “Eu os fotografava não tanto por vingança, mas porque eram um grupo interessante”, lembra.
The Beatles Tune In – Todos esses anos: Volume 1
Para o ex-beatle, o processo de ajustar o enquadramento, o foco e a iluminação se assemelhava a uma composição musical. Purista, ele critica a facilidade das fotos digitais atuais — e as compara ao modo fast food de muitos artistas da música comporem hoje. “Tem gente que entra no estúdio sem ter uma canção, nem ideia do que vai fazer — e fica ali tocando, até algo ‘aparecer’. Como nas fotos de celular, eles vão gravando trechos de músicas, e mais tarde escolhem algumas e fazem a mixagem”, diz.
As imagens do livro só ficam coloridas quando os Beatles chegam a Miami. Vemos Ringo em trajes sumários na praia, George tomando um drinque preparado por uma moça de biquíni, mergulhos no mar, partidas de vôlei e até um desengonçado McCartney tentando pescar. Esses idiossincráticos registros de Paul, no fundo, marcaram o fim da infância dos meninos de Liverpool: dali em diante, eles seriam graúdos ídolos mundiais. Para quem teve a vida tão devassada publicamente, nada como ter um dia de testemunha indiscreta da história.
Publicado em VEJA de 14 de Junho de 2023, edição nº 2845
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