Em abril, uma música com apenas quatro notas de piano e batida eletrônica repetitiva se tornou um hit viral com mais de 10 milhões de execuções no TikTok e 254 000 no Spotify. Heart on My Sleeve era interpretada em dueto pelas vozes dos pop stars The Weeknd e Drake — e a letra versava sobre o término do namoro do primeiro com a cantora Selena Gomez. Ela poderia ser só mais uma dentre tantas canções de dor de cotovelo que pipocam diariamente no pop. Só que os dois artistas jamais escreveram ou interpretaram a música de fato, que foi criada pelas novas ferramentas de inteligência artificial.
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Dessa forma, Heart on My Sleeve logo se converteu num caso emblemático dos desafios da regulamentação da música feita por meio da IA — inovação que já tira o sono de executivos e compositores, ainda que a exploração de seu potencial esteja só engatinhando. O uso causa um misto de euforia e apreensão nas mais diversas áreas — e na música não é diferente. Seu fruto mais vistoso até agora é a recriação das vozes de estrelas vivas ou mortas. Em 2021, o cantor sul-coreano Kim Kwang-seok, falecido há 27 anos, teve seu vocal refeito por um software numa canção inédita. Mas o fenômeno explodiu de fato nos últimos meses, com o progresso das novas tecnologias de clonagem de voz e a proliferação de sites que permitem fazer experiências de forma gratuita, como Aiva, Magenta, Watson, Amper, Covers.AI e Jukebox.
O grau de fidelidade e a facilidade de copiar as vozes de grandes artistas impressionam. O sucesso fake de The Weeknd e Drake foi criado por um usuário do TikTok identificado apenas como ghostwriter977. Ele treinou um software de IA para reproduzir as vozes dos dois cantores e disseminou o resultado no streaming — sem que eles recebessem um tostão por isso. A Universal Music entrou na jogada e pediu que a canção fosse retirada do ar, mas não foi atendida de imediato por ser necessário confirmar a infração aos direitos autorais, já que se tratava de composição inteiramente original — algo inédito e surreal.
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Entre os músicos e as gravadoras, a preocupação é com a monetização de canções criadas sem a autorização dos artistas. Para se ter ideia do desafio para as gravadoras, Heart on My Sleeve só foi barrada após a Universal achar uma brecha legal para tanto, alegando que a obra usava indevidamente trecho de uma música de outro produtor de seu cast. A legislação, enfim, não avança na mesma velocidade que a tecnologia: nem nos Estados Unidos há lei que assegure os direitos sobre uma voz criada virtualmente.
A prática esbarra ainda em questões éticas: é correto, afinal, recriar uma voz famosa para cantar algo que o artista talvez jamais cantaria? “Como filho da Elis Regina, acharia curioso ouvir minha mãe cantando Marília Mendonça. Mas isso jamais seria a Elis de verdade. Música é uma tradução de sentimentos, ideais e emoções humanas”, diz o produtor João Marcello Bôscoli.
Um episódio recente ilustra a bola dividida. A voz de Renato Russo foi usada para interpretar uma música sertaneja, Batom de Cereja. O espólio do artista, morto em 1996, ameaçou entrar na Justiça — e o criador da montagem a retirou do ar. No exterior, os exemplos abundam, com as vozes de Rihanna cantando Beyoncé, Frank Sinatra entoando um hit de Britney Spears, e Ariana Grande dando voz a músicas de Anitta e Pabllo Vittar. Há exemplos tocantes, como o de John Lennon cantando New, uma canção da carreira-solo de Paul McCartney.
Para além dos dilemas, a novidade é vista com bons olhos por produtores musicais, e artistas empolgam-se com o admirável mundo novo da IA. Para o engenheiro de som Carlos Freitas, que já trabalhou em gravações de João Gilberto e Tom Jobim, a ferramenta será inevitável na criação de novas músicas. “Todas as tecnologias passam por essa fase de adaptação”, diz ele. A opinião é compartilhada pelo produtor Pablo Bispo, autor de hits de Iza, Anitta e Ludmilla. “Um machado pode cortar madeira ou ferir alguém. Tudo depende do uso — e é assim com a IA”, compara.
Recentemente, o produtor americano Timbaland investiu numa startup para recriar vozes de artistas mortos e lançou uma música com o rapper Notorious B.I.G. (1972-1997). “Não tenho medo do que está acontecendo”, declarou. O DJ David Guetta também entrou na onda, ao emular a voz do rapper Eminem num show. “O futuro da música está na IA”, disse. Mas foi a cantora Grimes quem teve a iniciativa mais arrojada até agora. A ex de Elon Musk lançou seu próprio app, o Elf.Tech, liberando qualquer um para usar seus vocais em novas canções — desde que receba 50% dos lucros. Até o momento, mais de 300 músicas já foram feitas. Os robôs nunca tiveram tantas vozes — e também nunca provocaram tanto barulho.
Publicado em VEJA de 7 de junho de 2023, edição nº 2844
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