Existe uma doença – vamos chamar de doença – que acomete certos escritores e, por consequência, seus críticos e leitores. Em determinado ponto da carreira, depois de um ou dois livros de sucesso, eles simplesmente param de publicar. Não estamos falando de autores obscuros, mas de vultos incomparáveis da literatura universal. Intrigados diante de casos tão numerosos e absurdos, repetimos aquela que é a mais óbvia e irrespondível das perguntas: por quê?
Falecido em janeiro de 2010, J. D. Salinger tornou-se o protótipo moderno do escritor retirante (com o sucesso de O Apanhador no Campo de Centeio, parou de publicar e de aparecer em público), mas certamente não chegou aos pés do radicalismo do francês Arthur Rimbaud (1854-1891). Depois de publicar um único livro de poemas, Uma Temporada no Inferno, com o qual granjearia a imortalidade, Rimbaud (leia-se Rambô) abandonou os ambientes cultos de Paris e passou a se dedicar às viagens e ao comércio.
Numa fase posterior e mais agitada, alistou-se no Exército Colonial Holandês, do qual desertou. Teve uma breve passagem por Chipre, onde trabalhou como capataz numa pedreira, e por Aden, onde viveu com várias mulheres ao mesmo tempo. Tornou-se traficante de armas na Etiópia e, depois de contrair uma febre misteriosa, voltou à França, onde tentou, sem êxito, reencontrar o amante Paul Verlaine (sim, era também homossexual). Morreu em Marselha, num leito de hospital, com apenas 37 anos de idade.
Semelhante na essência, mas diferente nas circunstâncias, foi o caso do suíço Robert Walser. Passado o sucesso da juventude, Walser internou-se por livre e espontânea vontade num sanatório. Não satisfeito de se retirar da literatura, retirou-se também da vida social. Em 1956, aos 78 anos de idade, enquanto fazia uma de suas costumeiras caminhadas na neve, caiu à beira da estrada e morreu congelado.
Comparando os autores que renunciaram à escrita ao protagonista de um conto de Herman Melville, o espanhol Enrique Vila-Matas aprofundou o tema do escritor retirante num livro chamado Bartleby e Companhia. Como costuma acontecer aos europeus, porém, esqueceu de citar os casos brasileiros, mais interessantes e numerosos do que podemos supor.
Quem cursou o Ensino Médio deve ter ouvido falar de O Cortiço, romance de Aluísio Azevedo (1857-1913). É provavelmente o exemplo mais bem realizado de uma estética que poderíamos denominar “naturalismo brasileiro”. Coisa rara naquela época, Azevedo vivia do que ganhava com seus livros e suas colaborações para a imprensa. Entretanto, depois de passar num concurso público e se tornar diplomata, nunca mais publicou uma linha sequer de ficção. Tinha a literatura como um trabalho pesado e ingrato. Diante da primeira oportunidade de ascensão social, não teve pudores de abandoná-la para sempre.
Mas ninguém contestará que o nosso equivalente de Salinger seja o paulista Raduan Nassar, descendente de uma família de imigrantes libaneses. Graças à publicação de alguns contos esparsos e apenas dois romances – Lavoura Arcaica e Um Copo de Cólera – conquistou o público e a crítica dos anos 1970. Depois, sem a menor explicação, abandonou os livros para se dedicar à agricultura e à pecuária. Aparece de vez em quando, como na ocasião em que recebeu o Prêmio Camões, mas continua recluso – escrevendo? – e está prestes a completar 83 anos. Muitos acreditam que possua uma pilha de originais que, se forem publicados postumamente, revolucionarão a prosa nacional.
Era o que se dizia de Salinger, mas até agora, quase 10 anos depois de sua morte, nada apareceu.