‘É preciso ter força, é preciso ter raça’
‘Comentarista do Futuro’ vai até 1978: Flamengo campeão com gol de Rondinelli. De longe, revê o pai rubro-negro gritar "Gol!" no meio da torcida do Vasco
Deixei 2021 com o Flamengo em 10º lugar no Campeonato Brasileiro. Não deve causar espanto a vocês, leitores, visto que o clube carioca, mesmo já arregimentando a maior torcida no Brasil, até aqui jamais conquistou um título nacional. Mas vai soar bem estranho no futuro, revelo a todos, porque o rubro-negro estará vindo de um duplo triunfo, bicampeão Brasileiro em 2019 e 2020, e de seguidas temporadas vitoriosas, levantando muitas outras taças – lista que omito para não engordar demais este parágrafo. O sucesso daqui a 43 anos fará muitos torcedores e parte da mídia esportiva cogitarem se tratar do melhor Flamengo de todos os tempos. Uma heresia para outra facção, que defenderá ser impossível surgir equipe rubro-negra que supere a “Geração Zico” – fase de ouro que, dirá a história, teve início justamente ontem, nesse 1×0 sobre o Vasco que fez o Flamengo Campeão Carioca de 1978. O gol de Rondinelli, aos 41’ do segundo tempo, vai se tornar ícone da torcida, tipo o rosto de Che Guevara para jovens sonhadores ou a canção “Maria, Maria”, que Milton Nascimento acaba de lançar, futuro hino dos que nunca deixam de lutar. Tudo a ver com Rondinelli, pois diz um dos versos de Fernando Brandt: “É preciso ter raça!”
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Será assim que Rondinelli, esse zagueiro paulista, de São José do Rio Pardo, criado nas divisões de base da Gávea, será lembrado e chamado, mesmo daqui a quatro décadas: “Deus da Raça”, muito pelo tento de ontem, em que parece voar acima dos defensores vascaínos, destemido a gravar seu nome na eternidade. Desde que encontrei a Máquina do Tempo e iniciei essas viagens ao passado do futebol, sonhava com o dia em que voltaria ao Maracanã neste 3 de dezembro de 78. E digo “voltaria” porque eu, ou melhor, um “eu” quase meio século mais jovem, estava lá, era um dos 120.000 pagantes no Maior do Mundo.
Muita gente deve ter pulado o muro ou “passado junto” na roleta – prática comum nesses tempos, vocês do Rio conhecem – pra assistir ao jogão de ontem. Era mais que “dia de casa cheia”, o Maraca transbordava. Chegamos cedo, eu e meu pai, flamenguista, mas já estava impossível ver a partida no cativo lado rubro-negro das arquibancadas, à esquerda das cabines de rádio. Mesmo lá no alto, último degrau da arquiba, onde, em dias assim, torcedores ficam de pé os 90 minutos, não tinha lugar. Em qualquer um dos vãos, cinco ou mais fileiras de flamenguistas amontoados e esticando seus pescoços para conseguir alguma lasca do espetáculo. Não me perguntem o porquê, mas meu pai, sem encontrar outra alternativa, decidiu que assistiríamos ao jogo da torcida do Vasco. E lá fomos nós, rumo ao desconhecido…
Chegamos à metade cruz-maltina e a situação não era muito diferente. Com muito esforço, conseguimos um cantinho no tal platô do último degrau da arquibancada e, no segundo tempo, demos um jeitinho pra sentar. Isso, repito, atrás do gol do Vasco, vendo o Flamengo atacar lá em Pindamonhangaba. Foram ao todo 86 minutos de emoções contidas, sem poder emitir aquele tradicional “Uhhhh!’ nos lances de perigo, sem levantar nos contra-ataques, sem roer as unhas diante da pressão adversária… Os dois caladinhos, acompanhando o empate que daria ao Vasco o título do segundo turno, provocando novo confronto entre os rivais pela Taça do estadual. Quando, aos 41’ do segundo tempo, Rondinelli subiu para estufar as redes do Vasco, meu pai não se conteve: “Gooolllll!!!!!!!”, gritou, em meio a milhares de vascaínos. Queria muito assistir a esse momento insólito, dessa vez de longe, como observador. E agora podendo me divertir com a situação. Na primeira vez, lembro bem, não deu pra rir. Já-já eu conto.
Foi um jogo tão tenso esse Flamengo x Vasco que até Zico, sempre calmo e bem-comportado, acabou expulso, aos quarenta e blau da etapa derradeira. Outro lance que seguirá ímpar na carreira do Galinho, até ele pendurar as chuteiras, vimos no escanteio com que encontrou o cocuruto do Rondinelli. No futuro, o camisa 10 vai garantir ter sido este o único corner que bateu na carreira. Aos flamenguistas que aqui me leem e não duvidam de que sou mesmo um viajante do tempo recém-chegado de 2021, trago ótimas notícias. Esse Flamengo de Zico, que segue sem um título nacional sequer, amargava jejum de quatro anos no carioca, acumulava cinco partidas sem marcar um gol no rival da Colina (recorde no confronto) e já via nascer a fama de “time de craques que não levanta troféu” vai se reinventar e dar uma cambalhota no destino – assim como a que testemunhamos ontem, na comemoração delirante de Rondinelli.
Podem anotar aí o que os aguarda daqui em diante: serão 52 jogos sem perder (igualando a marca que o Botafogo acaba de alcançar), um tri-Carioca, três Brasileiros (sim, eles virão, finalmente) e uma Libertadores, habilitando-se a disputar o Mundial de Clubes. O resultado desta derradeira final vou deixar em sigilo, pra manter em vocês alguma aflição. Mas até lá, eu garanto, vai ser só festa. Ao chegar em 2021, podem abrir novas geladas, já serão 7 os títulos no Brasileiro (ou 8, mas esta polêmica não terei como explicar aqui) e duas Libertadores. Isso, pode mandar descer mais uma! Uma não, desce uma rodada geral pra galera!
É sempre bacana voltar ao Macaca nesses anos 70, quando as torcidas ainda entoam cânticos inocentes e românticos, como: “Ole-lê! Ola-lá! O nosso time tá botando pra quebrar”. Ou, em outra versão: “Ole-lê! Ola-lá! Fulano vem aí, e o bicho vai pegar” Muito legal! Soltei a garganta junto com a turba, claro! No futuro, este clássico das arquibancadas brasileiras vai desaparecer dos estádios e, acreditem, ressurgir com força total nas vozes dos torcedores do Barcelona, na Catalunha, convictos de se tratar de mais uma genial criação da terra de Gaudí. Nananinanão! Ou, em portunhol: Nananina-nones! Letra original e melodia nasceram graças ao talento de Zuzuca, compositor do samba-enredo que deu o Carnaval de 1971 ao Salgueiro. Pra que ninguém se esqueça disso no futuro, vale a rima: alô, galera da Espanha, Ole-lê! Ola-lá! é “Bra (zu) zuca!”
Refletia sobre isso, cachorro-quente Geneal numa mão, Mate-Leão na outra, quando finalmente identifiquei a proeminente careca do meu pai reluzindo entre fartas cabeleiras e bigodes vascaínos _ “eu” certamente aboletado por ali, mas engolido pela massa. Mal começa a partida e Zico dá cabeçada que obriga Leão a fazer pose para os fotógrafos. Aos 14, o Galinho novamente leva o arqueiro vascaíno a trabalhar. Mas era jogo duro. Lá-e-cá. O Vasco, vocês sabem, chegou ao confronto melhor, após um Segundo Turno irretocável, com 10 vitórias em 10 jogos, tanto que bastaria o empate ontem pra papar o Segundo Turno. Foi um capricho da tabela que, na última rodada, se desse o embate com o rival, que o perseguia em pontos. Ou um desejo do destino…
Com a faixa preta a cruzar o peito, o Vasco da Gama é um time de respeito: Roberto Dinamite, Guina, Ramón, Marco Antônio, Wilsinho, Orlando Lelé, Leão… Vários deles brilharam na esquadra que, ano passado, interrompeu a sequência de conquistas estaduais da Máquina Tricolor. Do lado rubro-negro, o futuro me permite avaliar, muitos ainda não alcançaram a excelência e o futebol que lhes reservarão cadeiras no panteão dos maiores da história do clube. E Claudio Adão ontem foi desfalque. Outro detalhe desconhecido de vocês, flamenguistas, e que vou entregar: ainda não figuram, entre os 11 titulares, dois jogadores que, alerta de spoiler!, em breve vão entrar pra não mais sair. Um lateral de olhos sempre aparentemente tristes, que já tem dado as caras, e um ponta-esquerda mágico cuja história no futebol guardará estreita relação com o Fantástico, programa da Rede Globo. Em campo, entortará laterais em vez de talheres, proporcionando uma outra divertida atração por muitos domingos.
Vindo do teto, ouço o tradicional “Suderj Informa…”, anunciando algo que não consigo entender. Leão volta a salvar o Vasco, após cruzamento de Tita que o zagueiro Gaúcho espanou contra a própria meta. Isso aos 24 da primeira etapa, quando pude observar meu pai fazendo um leve balanço de corpo, contendo mais um impulso natural de torcedor. O “eu” adolescente, também deu pra avistar, me pareceu mais atento a este “lance perigoso” do pai que à vertical investida rubro-negra. Não eram essas as cores do seu, ou melhor, do meu coração de torcedor, embora acompanhasse religiosamente o pai em todos os jogos do Flamengo. Lembrei então que, aos 13 anos, eu ainda sofria com aquele momento difícil da vida de qualquer jovem cercado por tios, primos e amigos da família com diferentes preferências no futebol, todos disputando quem conseguirá cooptá-lo para as fileiras de seu clube de coração. Tentando me salvar deste Fla-Flu doméstico, ano passado, lembro bem, cheguei a declarar a todos que decidira ser Vasco, o que durou muito pouco. No futuro, sinto informar, as crianças vão sofrer ainda mais, pois a maioria flamenguista nas salas de aula transformará pressão em bullying, palavra muito em uso no século 21, de onde venho, usada para designar o que hoje chama-se “cascudo” ou “dar um Nescau!”
Mas voltemos ao jogo. Claro que, mais de 40 anos depois, o único lance gravado na minha memória era o gol de Rondinelli – além, óbvio, do ato final do meu pai, igualmente emocionante e dramático. Por isso foi novidade acompanhar Roberto arrancando ao final do primeiro tempo, se livrando de dois marcadores e chutando para as balizas defendidas por Cantareli. Curioso também ver que o arremate do Dinamite às vezes podia sair assim, mais pra estalinho mesmo.
Intervalo. Fiz questão de acompanhar a movimentação de meu pai, sorrateira, aproveitando o levantar de torcedores rumo ao banheiro ou bar mais próximo para arrumar um buraquinho em que poderíamos descansar pernas e esquentar os bumbuns. Legal também foi notar, aqui e ali, aquelas almofadinhas ridículas com a cor do time que alguns torcedores insistem em levar ao estádio. Com alcinha e tudo. Pensei em visitar os sanitários do Velho Maraca nesse final dos anos 70, mas avaliei que dava pra segurar, evitando as filas quilométricas que adentram as insalubres instalações oferecidas à galera. Em 2021, anotem, estádios serão privatizados, perderão em magia e romantismo, mas terão banheiros decentes. O passar dos anos talvez tenha me feito um torcedor mais “almofadinha”. Terá sido essa a origem da expressão?
Não me recordava também de que o Vasco retornaria melhor na segunda metade do jogo. Principalmente pela troca de Ramón por Paulinho, que acaba protagonizando lances importantes nesses 45 minutos finais. Aos 14, ele ultrapassa a linha defensiva do Flamengo e arranca sozinho diante do goleiro, mas o juiz erra feio marcando impedimento de Dinamite, que sequer estava próximo ao lance. Aquele garfinho clássico, isso o tempo não vai mudar. Aos 38, Rondinelli falha – logo ele, que em três minutos vai sair de quase-vilão a herói – e Roberto se aproveita, vai à linha de fundo e cruza para Paulinho, livre, cara-a-cara com Cantareli, mas o ponta chuta em São Januário. Antes disso, o Flamengo quase inaugurou o placar após tabelinha entre Adílio e Zico, que arrematou forte para nova grande defesa do guarda-metas vascaíno, que ontem foi de fato um Leão em campo. Revelo a vocês que o nosso arqueiro titular da Seleção nas últimas duas Copas, reserva em 70, não vai à Espanha, no Mundial de 82. Mas voltará em 1986. No banco. Ou melhor: na jaula!
Com o Flamengo em busca do gol que lhe daria a Taça sem necessidade de novos confrontos, a pressão só aumenta – no jogo e no coração rubro-negro do meu pai. O técnico Fantoni troca Wilsinho por um volante, recuando ainda mais o Vasco. As décadas vão passar e em 2021 treinadores brasileiros ainda vão adorar fazer esta “sofisticada” mudança estratégica. “O relógio marca…” Os sinais sonoros das rádios Globo e Tupi ecoam quase que juntos, ricocheteando nas estruturas do Maracanã. Passamos já dos quarentinha, e vejo aquele moleque insolente enchendo o saco do pai para levantarem e irem embora antes do apito do juiz, evitando o tumulto da multidão deixando o estádio. No campo, Júnior cruza forte demais, sem perigo, e o lateral Marco Antônio dá um escanteio “de graça” pro Flamengo. “Vambora, pai, vamu…”, insiste o garoto, almofadinha sem alça. E ouve como resposta: “Péra, filho… Já vamos… Só mais esse corner e a gente vai…”
Os jornais de hoje ainda não registram, mas no futuro será de domínio público a participação decisiva nesse gol histórico de um personagem que estava em campo pelo Flamengo mas não vestia a camisa rubro-negra – se vestia, estava por baixo do seu colete de muitos bolsos. O apelido é de jogador: Tché, fotógrafo uruguaio, batizado Ruben Etchevarria, que acompanha o cotidiano do clube e ontem posicionara-se atrás do gol de Leão. De onde eu estava, não consegui enquadrar a cena, mas foi Tché que, ao ver a bola de Marco Antônio saindo pela linha de fundo, apressou-se em arremessá-la para Zico, ordenando: “Bate rápido, vai!”.
Estava mesmo escrito nas estrelas esse gol eterno. Até Rondinelli, que surgiu como um raio para a cabeçada mortal, por muito pouco não subiu ao ataque naquele escanteio. O jogador sempre vai contar que recebeu de Carpegiani – um monstro na partida de ontem – a ordem para não ir para a área do Vasco. Mas desobedeceu, como um “Deus da Rebeldia!”. Gigante em seus 1,76m de altura, Antônio José Rondinelli Tobias ainda defenderá muito o Flamengo, deixando o clube após 396 jogos (242 vitórias, 100 empates, 54 derrotas) e 14 gols. Antes de encerrar a carreira, terá passagens menos brilhantes por clubes como Corinthians, Paysandu, Atlético-PR, Goiás e, pasmem, Vasco! Mas sua história é e sempre será em vermelho e preto. Com esta cabeçada que levou o título para a Gávea, no futuro vai virar tema de curta-metragem e, após as conquistas internacionais, receberá do clube as faixas de campeão, mesmo não estando no elenco. Na Seleção Brasileira, serão apenas três jogos e uma Copa América sem entrar em campo. Mas no Flamengo vai figurar pra sempre na Seleção dos melhores de todos os tempos.
“Goooollllllll!”, deu sim pra ouvir o berro do meu pai, tal era o silêncio fúnebre na arquibancada vascaína. Remoendo a memória, lembro de perceber muitos, muitos, mas muitos mesmo rostos de torcedores se virando em nossa direção, incrédulos e ameaçadores. O meu ficou paralisado, expressão de pânico, rubor disfarçando uma espinha aqui outra acolá. E agora? Como sair dessa? Seria ali a minha morte, soterrado por pancadas de bambus das bandeiras alvinegras? Foram segundos difíceis, a minha vida de torcedor passando como um filme na minha mente juvenil. Na verdade, milésimos de segundo, pois meu pai teve o que chamamos de “presença de espírito” – expressão que chegará a 2021 quase esquecida. Já de pé, percebendo a roubada e sem deixar a bola cair, à repentina explosão de “Goooollllll” emendou, como num bate-pronto: “Que m…. ! Gol do Flamengo, que m…!”. Ato contínuo, se voltou para mim: “Vambora, meu filho, não quero mais ver essa m…”. E me puxou pelo braço em direção à saída pelo anel superior. Ele eufórico; eu com o inebriante alívio dos sobreviventes.
Com a massa vascaína em estado de choque, não foi difícil ver em detalhes a cena, mesmo agachado e tentando me camuflar atrás de um saco de Biscoito Globo. Logo pai e filho se apagaram em meio à massa, saindo do meu campo de vista. Mas a memória nunca esmaece. No trajeto rumo ao Portão, apertando as passadas e evitando olhar pra atrás, não éramos os únicos a abandonar as arquibancadas após o gol. Nos cercavam centenas de torcedores vascaínos também em marcha e vociferando contra o infortúnio. Lembro que olhei pro velho Denzil, meu paizão, e vi que ele repetia baixinho pra ele mesmo, às vezes me fitando e dividindo comigo sua euforia: “Gol! Gol! Gol do Rondinelli. Mengão campeão!!” Por essa e outras que voltarei a 2021 ainda mais convicto de que o pai da gente é e sempre será como o Rondinelli na vida do Flamengo: um herói!
FICHA TÉCNICA
Flamengo x Vasco
Estádio: Maracanã
Local: Rio de Janeiro
Data: 03-12-1978
Árbitro: José Roberto Wright
Renda: Cr$ 6 642.210.00
Público: 120.433 pagantes
Renda: CR$ 294.420,00 Cruzeiros Gol: Rondinelli (41’2T)
Flamengo: Cantareli, Toninho Baiano, Manguito, Rondinelli e Júnior; Carpegiani, Adílio e Zico; Marcinho, Cléber (Eli Carlos) e Tita (Alberto Leguelé)
Técnico: Claudio Coutinho
Vasco: Leão, Orlando, Abel Braga, Gaúcho e Marco Antônio; Helinho, Guina e Paulo Roberto; Wilsinho (Paulo César), Roberto Dinamite e Ramón (Paulinho).
Técnico: Orlando Fantoni
Cartão amarelo: Marco Antônio, Cléber, Rondinelli. Leão e Roberto;
Cartão vermelho: Guina e Zico
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