São tantos e tão frequentes os disparates e impropérios ditos pelo presidente Jair Bolsonaro que o país passou a considerá-los normais. Mesmo multiplicadas nestes tempos de coronavírus, as asneiras diárias já nem mais espantam. Mas conseguem, como se calculadas fossem, encobrir o quanto o governo é inepto, pernicioso, ruim.
A gravidade da Covid-19 – 2,2 milhões de infectados e 160 mil mortos no mundo, 2,2 mil no Brasil em apenas um mês, hospitais abarrotados e falta generalizada de equipamentos -, somada aos desatinos cotidianos do presidente, costuma ocupar quase 100% do noticiário. Deixam em segundo plano, longe dos holofotes ou relegados ao pé de página, os absurdos praticados no dia a dia de seu governo.
A começar pela mentira deslavada do presidente quanto à recuperação econômica, que já não acontecia antes do vírus. Afirmar que “estávamos praticamente voando no último trimestre” é desfaçatez, burrice ou ambos. O PIB de 2019 foi de apenas 1,1%, muito aquém do que o seu Posto Ipiranga prometia entregar. E o primeiro trimestre deste ano fechou em março, mês já impactado pelo coronavírus.
Ou seja, o que era voo de galinha virou de avestruz.
A lorota ajuda Bolsonaro a manter o discurso de que a economia pode matar mais do que o vírus, assim como outras sandices – “tem de enfrentar o vírus, não adianta se acovardar, ficar em casa” – o auxiliam a manter o ibope junto ao seu público. Servem ainda para exacerbar a personalidade egocêntrica, alguém incapaz de enxergar além de seu umbigo, nem quando a vida das pessoas está em jogo. “É um risco que corro. Se agravar, vem para o meu colo.”
Felizmente, as instituições, Justiça e Parlamento, e a sociedade têm posto freio no presidente em todas as aloprações que dizem respeito ao coronavírus.
O problema é o resto.
Enquanto o país dirigia os olhos para a exoneração de Luiz Henrique Mandetta do Ministério da Saúde, o governo demitia o presidente do CNPq, João Luiz Filgueiras de Azevedo, que vinha combatendo o esvaziamento do Conselho. Três dias antes, o ministro Ricardo Salles, do Meio Ambiente, afastava Olivaldi Azevedo, diretor do Ibama, que conduzia uma megaoperação contra madeireiros ilegais em reservas indígenas no sul do Pará.
Para confirmar a sequência de absurdos que regem o bolsonarismo, os dirigentes foram expurgados por excesso de competência, algo incompatível com esse governo.
Na área ambiental são desastres atrás de desastres.
Números do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) apontam que os alertas de desmatamento na floresta amazônica cresceram 29,9% em março. Uma terra arrasada que alcança 326,51 km² contra 251,3 km² do mesmo mês do ano passado. Também em março, dois jovens morreram baleados em um garimpo ilegal em Aripuanã, a 976 km de Cuiabá. Por lá testemunhas afirmam que a fiscalização faz corpo mole porque aguarda a legalização da área.
Em fevereiro, Bolsonaro assinou projeto de lei autorizando a mineração e a geração de energia em reservas indígenas. Na época, disse que se pudesse confinaria ambientalistas na região amazônica para que eles deixassem “de atrapalhar os amazônidas de dentro das áreas urbanas”. Já defendera na sua live semanal que o índio tinha evoluído, cravando a máxima: “Cada vez mais, o índio é um ser humano igual a nós”.
Pouca atenção se dará também ao fato de Bolsonaro ter revogado portarias do Comando Logístico do Exército (Colog) de rastreamento, identificação e marcação de armas de fogo e munições. A canetada supressiva endereçada a um restritíssimo grupo de fãs do clã, serve como luva ao crime organizado, interessado em ocultar a origem de sua artilharia. Mas teve destaque no Twitter do presidente e de seus filhos, como se fosse algo de grande valia para os brasileiros.
É preciso seguir as recomendações ditadas pela ciência, é preciso ficar em casa para reduzir a velocidade de contágio do vírus e evitar a explosão do sistema de saúde. Mas é igualmente preciso manter o índice de indignação. Não deixar a barbaridade ser tratada com complacência e impedir que o desatino seja corriqueiro, normal.
Acima de tudo é preciso estar sempre alerta para não sucumbir diante de um governo obtuso, que tem a desconstrução e o ódio como balizas. Não só no combate à Covid-19, mas em todas as áreas.
Mary Zaidan é jornalista