Pregação coletiva pelo entendimento, agrados aos presidentes da Câmara, do Senado e do STF, homenagem às vítimas da Covid-19. Jair Bolsonaro parece ter sido inoculado pelo vírus do bem, capaz de fazê-lo humano diante da pandemia, afastando-o da paranoia de só enxergar inimigos por todos os lados. Mas como sua personalidade é conflituosa por natureza, a prudência recomenda esperar para ver até onde a calmaria vai.
A repentina conversão de bílis em mel tem sido atribuída aos militares que orbitam no entorno de Bolsonaro. Esse grupo teria sido decisivo nos acenos aos STF e no convencimento do presidente para que ele indicasse um nome técnico para o Ministério da Educação.
Bolsonaro também estaria menos temeroso depois do sucesso das negociações com deputados do Centrão. Aqui, além de trair os ditos de campanha, quando enxovalhava a “velha política” assentada na troca de cargos para garantir governabilidade, Bolsonaro fez pior: abriu a porteira apenas para derrubar um eventual processo de impeachment. Mesmo sendo uma turma sabidamente volátil, o presidente acredita ter ganhado fôlego – e sobrevivência.
Outros creem que os gestos de paz são fruto de um governante solitário e acuado em várias frentes. Em especial pela prisão do ex-companheiro e faz-tudo Fabrício Queiroz e pela carga explosiva da fala destrambelhada de Frederick Wassef, que até o último domingo defendia o primogênito Flávio no escândalo das “rachadinhas”, e o papai dele no caso Adélio Bispo.
Bolsonaro teria esticado a corda por demais e agora, diante do cerco a ele e aos seus, o recuo era a única saída. O armistício, portanto, seria tático.
Sob o título “Bolsonarinho paz e amor”, em abril do ano passado chamei atenção aqui neste espaço para uma metamorfose do presidente que, depois de tomar bordoadas do Parlamento e até perder o PSL, partido pelo qual se elegeu, passou a distribuir sorrisos e abraços. Em um café da manhã com jornalistas, contou piadas, pediu desculpas por arroubos, foi até divertido.
“Não há como maldizer uma conversão para melhores modos, especialmente se eles podem pacificar ânimos, destravar o governo e fazer o país andar”, escrevi. “O problema é acreditar em mudança de humor tão repentina e radical”, dúvida que continua a se impor.
A versão adocicada durou pouquíssimo à época. Coincidência ou não, o filho 02, Carlos, criara um quiprocó gigantesco com a comunicação oficial do governo, o que desembocou na derrocada do general Carlos Alberto Santos Cruz.
Há um ano ou agora, o fato é que nada no ânimo do presidente está relacionado com a governança do país que o elegeu.
Desafiando a pandemia, doentes, familiares de mortos, profissionais de saúde e todos que fazem o possível para manter o isolamento social, Bolsonaro adora se exibir em abraços. Faz visitas sorridentes em comércios das cidades periféricas de Brasília, participa de manifestações contra o STF e o Congresso, de inaugurações lotadas. Ameaça comemorar seu aniversário com um churrascão, se diverte de motocicleta aquática e no asfalto, pratica tiro esportivo em horário de trabalho. Faz piada com o sofrimento dos outros.
E vira fera se algo parece chegar perto dele e dos seus, como se viu na fatídica reunião de abril – “eu não vou esperar f… minha família toda, de sacanagem, ou amigos meu…” -, uma das provas arroladas no processo que investiga a interferência confessa que fez na Polícia Federal em benefício próprio.
As variações repentinas de humor, para o bem ou para o mal, costumam ocorrer quando ele se sente ameaçado ou vê os filhotes em apuros, ou quando ele ou alguém da sua prole obtém algum sucesso.
Agora, regozija-se pela vitória apertada do filho Flávio na 3ª Câmara Criminal do Tribunal Justiça do Rio, por 2 x 1. Respira. Mas algumas provas de fogo estão logo à frente: o depoimento no processo sobre a interferência na PF, o inquérito das fake news que corre no STF. E a provável revisão do privilégio de foro do filho no caso das “rachadinhas” pelo pleno do TJ-RJ e até por instâncias superiores.
Ao primeiro revés Bolsonaro voltará a espumar.
O que se vê hoje são elogios a uma trégua tão falsa quanto os milagres da cloroquina.
Mary Zaidan é jornalista