“Paira sobre o final dos milênios uma crença mítica no final dos tempos. É como se o calendário não medisse uma variável contínua e, de repente, caísse a última folhinha do milênio e, com ela, a humanidade inteira.
Desta vez, seria tragada por labaredas sem os sobreviventes da Arca do dilúvio. Talvez um castigo imposto ao Homem que expiaria pelos pecados de um mundo hedonista onde cada minuto deve ser vivido com a intensidade do último dia de vida.
Na verdade, não é preciso buscar em certezas escatológicas ou na ficção cientifica as razões do fim dos tempos. Basta olhar em volta de nós mesmos. A rua. O bairro. A cidade. O pequeno universo das nossas menores circunstâncias.
A propósito, a cidade que deveria ser lugar-abrigo, base física da solidariedade e da convivência transformou-se numa passarela de autômatos que cotidianamente se cruzam. Numa percepção mais real, as cidades parecem um campo de batalha: a luta canibal pela sobrevivência associada à noção neurótica do progresso opulento, opulência que conduz o ser humano a palmilhar os caminhos da devastação. E aí, impera o crescimento, o deus oculto da nossa sociedade. ‘Este deus que se esconde – diz Roger Garaudy – é um deus cruel: exige sacrifícios humanos’. Para ele, o mandamento é que o sistema de produção seja crescente, mesmo que se faça da natureza um ‘bem de renda’.
Com este objetivo, pouco importa que tombem as árvores e com elas a beleza do verde. A fertilidade da sombra. A pureza do ar. Pouco importa que desapareçam os pássaros e não mais se escute seu lírico canto. Parece irrelevante que se soterrem os mangues, sepultados a riqueza e o equilíbrio ecológicos. Não importa, também, que em avenidas largas e para o conforto de poucos, o automóvel transpire o monóxido de carbono para todos. E assim se movam indústrias, afetando o ar, rios descoloridos e peixes agonizantes.
O ‘homem civilizado’ caminhou pela face da terra e deixou um deserto no seu rastro. Imaginou-se, dominador da natureza, abandonando o exemplo franciscano da fraternidade: irmão do sol, irmão da lua, irmão da chuva”.
Caro leitor, este texto é a introdução de artigo que escrevi em 06/6/1984 na revista “Ecologia como filosofia e ética”, publicada pela FIDEM, em homenagem ao notável professor e ecólogo Vasconcelos Sobrinho. A releitura se deu graças ao isolamento social. A ousadia de reproduzir decorre da atualidade da tragédia pandêmica e das ameaças globais.
Gustavo Krause foi ministro