Não está fácil ser Deusa da Justiça. Têmis que o diga. Juristas trabalham dia e noite na busca de técnicas de remoção da venda dos olhos da justiça. Considera-se até mesmo via cirúrgica. Ou, se necessário, amputação.
Em inesperado (ou talvez previsível) e espetacular sequência de eventos, juristas buscam a freneticamente cura da cegueira que, dizem, deveria prevalecer na aplicação da lei. Remover pública e institucionalmente a venda de Têmis virou prioridade. Ainda que a custa da humilhação da filha de Urano e de Gaia.
Em esforço sem precedentes, juristas tropicais consideram prioritário a aplicação desigual da lei tornando inadmissível que a justiça não leve em consideração a identidade do condenado. Nos trópicos, a justiça tem horror a regra. Mas é apaixonada pela exceção. Para ela, fatos, são muitas vezes secundários. E sempre relativos.
Já sabíamos que o país havia tempo navegava sem bússola. Deriva é coisa que parece nunca incomodar. Direção e sentido são coisas para lugares onde jabuticabeiras não crescem. Não causa surpresa que em nação viciada em fraude, a balança da justiça sempre funcione adulterada.
Muito menos é causa para espanto que a espada da justiça, raramente utilizada, seja enferrujada, sem corte, ou que careca do peso necessário ao fim (ou pelo menos redução) da impunidade. Até aí, tudo normal na terra da anormalidade.
A novidade agora é simplesmente assumir publicamente que que a lei vale de acordo com a cara do freguês. Já que aparentemente aumentar a estatura do nosso sistema legal é carta fora do baralho, a decisão considerada sensata parece envolver o rebaixamento do teto. Sem medo de ser feliz.
Não que igualdade na aplicação da lei ser considerada uma tradição, ou mesmo corriqueira no um dia foi o país do futebol. Acreditar no equilíbrio da justiça tropical talvez seja absurdo. E certamente insensato. Seria simples propensão inaceitável ao autoengano. Inconsequente mesmo.
Mas haviam as aparências. Ou no mínimo a preocupação ou a tentativa de salva-la, mesmo que com narrativas e justificativas esfarrapadas, espalhadas por tediosas palavras nas toneladas de documentos ininteligíveis depositados na pilha de processos parados no sistema judiciário tropical.
Mas em tempos de maldade insolente, aparência perdeu a serventia. Diante da exaustão de argumentos que, mesmo carecendo de sentido, sejam minimamente lógicos, faltam opções para justificar o injustificável. Resta abraçar o horror.
Evoluímos da hipocrisia para a simples institucionalização escancarada da injustiça. Não é mesmo tempo ou lugar para justiça cega. Têmis que se cuide. Vai acabar nua.
Elton Simões mora no Canadá. Formado em Direito (PUC); Administração de Empresas (FGV); MBA (INSEAD), com Mestrado em Resolução de Conflitos (University of Victoria). Publica blog na revista Meio & Mensagem. E-mail: esimoes@uvic.ca