
A tarde é chuvosa, tarde de fim de março, de “chuvas de março anunciando o verão”, palavras do maestro Jobim. Abro a janela, a pracinha vazia de pessoas, mas repleta de árvores, de verde, de vida. Ouço seu silêncio, um silêncio calmo e ao mesmo tempo tristonho, evidenciando uma quarentena de defesa a um pequeno micro organismo anunciando uma catástrofe mundial. A pequenez de um vírus bate de frente na “onipotência” fantástica dos humanos. Quem somos diante do poder mortífero desse pequenino ser vivo que nos mostra limitados, impotentes, frágeis e vulneráveis? Como prevenir nossa vida a não ser se isolando, refugiando-se numa solidão sadia, preventiva? De repente enxergo um beija-flor se acariciando na pétala de uma rosa. Dá-me inveja, pois nesse momento estou distante de carinhos concretos, mas estou também juntos à família compartilhando angústia, temores e às vezes alegria. Um filho distante em outro país, uma filha trabalhando incessantemente no Ministério da Saúde, na equipe de combate à virose. Eu, minha esposa, meus livros, minha música, meus escritos e agora, meu consultório através da magnitude dos meios virtuais. Virtual sim, mas quem disse que a virtualidade impede o contato acolhedor e afetivo com meus analisandos?
É hora de se recolher para dentro de mim, encontrando gritos e sussuros de angústia, no entanto me deparando com os recursos psíquicos, onde os “objetos internos”, as pessoas que guardo inside, me acompanham e me livra da solidão-abandono para um estar só criativo. É hora de refletir o egoísmo e narcisismo mortífero da ideologia capitalista; de repensar uma nova forma de convivência humana, onde se faz necessário o cultivo do humanismo, da compaixão e da consciência de que a sociedade de mercado faliu, desmoronou. Foi preciso um ínfimo vírus para detonar o desespero dos poderosos, as angústias de falência dos mais ricos, o abandono às políticas de saúde públicas e a indiferença dos governos no cuidado do social.
Estamos todos no mesmo barco, atravessando uma tempestade coroada de morte, desastre econômico e “vivência de fim de mundo”. Teremos futuro?, sim teremos. Um futuro novo, uma nova ordem social, onde o narcisismo dê lugar a um “social-ismo”, como dizia Wilfred Bion, psicanalista inglês-indiano. Lembro afinal, nesse meu solilóquio das sábias palavras de Guimarães Rosa, no Grande Sertão, quando da fala de Riobaldo, escreveu: “Desespero quieto às vezes é o melhor remédio que há. Que alarga o mundo e põe a criatura solta. Medo agarra a gente é pelo enraizado. Fui indo. De repente, de repente, tomei em mim o gole de um pensamento —-estralo de ouro: pedrinha de ouro. E conheci o que é socorro”.
Carlos de Almeida Vieira é alagoano, residente em Brasília desde 1972. Médico, psicanalista, escritor, clarinetista amador, membro da Sociedade de Psicanálise de Brasília, Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e da International Psychoanalytical Association