A racionalidade e a lógica indicam o caminho do isolamento social e as medidas restritivas até que a curva da pandemia comece a melhorar. Valores como justiça social, e sentimentos como compaixão e empatia, tornam imperativo cobrar das autoridades medidas urgentes de complementação de renda, desonerações e esforço máximo para atender aos mais vulneráveis. Nada disso, porém, pode ser confundido com a falta de noção dos espertinhos que querem tirar vantagens que vão muito além da pandemia e dos que tentam aproveitar politicamente a situação ou usufruir seus cinco minutos de fama.
Todos os dias, somos surpreendidos pelo Diário Oficial e por medidas anunciadas e votadas de supetão. Quarta-feira, ao acordar, descobrimos que podemos sacar R$ 1.045,00 do FGTS e que o PIS/PASEP acabou. Com a primeira providência, o governo Bolsonaro se antecipou a uma proposta do PT, que provavelmente o Congresso aprovaria. O Executivo está ficando rápido no gatilho. Alguém no Legislativo anuncia, ele vai lá e faz — como no auxílio, que era de R$ 500 e acabou ficando em R$ 600. Quanto ao fim do PIS/PASEP, sabemos que nenhum brasileiro tem amor por esse fundo, embora alguns tivessem dinheiro lá. Será que passamos pela sonhada reforma desburocratizadora de fundos e tributos enquanto dormíamos? Ninguém explicou.
Nesse momento delicado, estamos todos perdidos, e às vezes fica difícil avaliar de cara o que é mesmo bom ou ruim, se ajuda ou cria problemas. O aplicativo da inscrição para receber o auxílio emergencial demorou e teve, nas primeira 24 horas, mais de 20 milhões de acessos — para se ter uma ideia da carência de boa parte da população. Ao mesmo tempo, porém, especialistas em políticas de distribuição de renda e prefeitos dizem que este acabará sendo o caminho mais complicado para que o dinheiro chegue a quem mais precisa, até porque o brasileiro miserável de verdade não tem celular nem acesso à internet.
Mais fácil teria sido usar os cadastros sociais das prefeituras, em sua maioria montados na era petista, mas ainda inteiros e capazes de identificar os mais pobres. Ou chamar especialistas reconhecidos na formulação e execução de programas sociais. Só que esse pessoal é “vermelho”, como se diz no jargão bolsonarista — e, para esse governo, a ideologia está acima do bem estar da população.
Não é só no Executivo. No DF, com uma canetada, um juiz pode ter cancelado as eleições municipais deste ano. Itagiba Catta Preta Neto, em sentença com cara de manifesto, bloqueou os fundos eleitoral e partidário e destinou seus R$ 3 bilhões ao combate ao coronavírus. A decisão pode ser revista por instância superior, mas é o caso de ficar de olho no resto da torcida para adiar as eleições, um marco da democracia, usando como desculpa a pandemia. A seis meses do pleito, quem defende isso no fundo não quer eleições por medo de perder.
São muitos os exemplos, até de quem, involuntária ou apressadamente, arrisca-se a criar confusão para o futuro. No Legislativo, foi admirável a atuação do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, ao votar a toque de caixa, remotamente, os projetos de combate ao coronavírus. Mostrou competência e espírito público. Mas passou do ponto ao aprovar na mesma tarde, em dois turnos, com voto pela Internet, uma emenda constitucional — a PEC do Orçamento de Guerra. Precisou ser lembrado pelo Senado, que adiou o exame da matéria para semana que vem, que as coisas não podem ser assim com mudanças na Constituição.
É preciso mais vagar e reflexão para não abrir precedentes perigosos para o futuro. Maia, que não é bobo, parece ter aprendido a lição. Desistiu de votar o Plano Mansueto, uma profunda reestruturação das finanças estaduais com ajuda federal, durante a pandemia. Vai destacar do projeto, para votação imediata, itens urgentes para os estados, como renegociação de dívidas e compensação de impostos. O resto só na volta à normalidade. Emergência é emergência, reforma é reforma, democracia é democracia — e suas regras têm que ser preservadas em qualquer circunstância.
Helena Chagas é jornalista