Quanto maior a desarmonia social, mais distante o senso comum, ponto na régua dos hábitos e costumes da sociedade. E tal dissenso nos leva a um ciclo de intensa dissonância cognitiva, caracterizada por incertezas, polêmicas, um tempo de desolação.
Querelas acentuam as diferenças. Antes, dois temas exibiam conflitos: futebol e religião. Hoje se fazem presentes na política, nos governos e, claro, na crise sanitária.
O que gera essa paisagem? Não há um aspecto, um eixo-mor, a menos que agrupemos os principais fatores em torno do Produto Nacional Bruto da Felicidade (PNBF). Que junta dinheiro no bolso, barriga satisfeita, exemplares transportes coletivos, alimento barato, casa habitável, água encanada, esgoto e eficientes hospitais e maternidades, vacinas rápidas e para todos, enfim, satisfação coletiva. Esses aspectos apontam para o bom senso.
Ademais, conforme Guy Debord, em seu livro A Sociedade do Espetáculo, toda a vida “nas sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos”. No mundo atual, o que mais importa aos representantes é aparecer, dourar a imagem, fazer cópia do original. “A ilusão é sagrada e a verdade é profana”, arremata Debord.
Tempos de conflito e de ódio destilado pela política utilitarista, que se banha nas águas franciscanas do “é dando que se recebe”. Simon Bolívar, há mais de dois séculos, ecoava seu lamento: “Não há boa-fé na América, nem entre os homens, nem entre as nações. Os tratados são papéis, as Constituições não passam de livros, as eleições são batalhas, a liberdade é anarquia, e a vida um tormento”. Emboscadas e traições na política nunca foram tão avassaladoras. A morte de mais de mil pessoas por dia no Brasil nem comove mais.
Pior é a resignação. “Ah, não há jeito de melhorar, devemos nos acostumar; ele vai ser reeleito facilmente; essas oposições partidárias são fracas e não resistem a um rolo compressor”. A linguagem social ruma para o conformismo e a leniência. “Se os maiorais roubam, por que não eu”? Forma-se uma camada de desonestidade, a partir do exemplo de cima. O novo triângulo que se desenvolve nas democracias – políticos, burocratas e círculos de negócios – reforça a “tecnodemocracia”.
E onde estão as vacinas éticas e morais de que nos fala o padre João Medeiros Filho, em celebrado artigo no jornal Tribuna do Norte (RN): “Além das vacinas contra a epidemia que grassa pelo Brasil, necessita-se também imunizá-lo contra o ódio, radicalismo, egoísmo, interesses escusos, desrespeito, injustiças e mentira. Incontestável que a fragilidade da saúde pública é um problema crônico, que se arrasta há décadas. Não faltam alertas e denúncias de profissionais e líderes. Não se improvisam soluções duradouras, nem existem respostas automáticas e mágicas. Urge uma dose maior de solidariedade e otimismo. É necessário crescer no altruísmo, inoculando na sociedade mais respeito, diálogo e amor.”
Tarefa para gerações. A elevação moral de um povo ao mais alto grau civilizatório não será alcançada sem a base da cidadania: Educação. Sem isso a Civilização não avança.
Gaudêncio Torquato é jornalista, escritor, professor titular da USP e consultor político