O chavão diz que, no Brasil, o ano só começa depois do carnaval. Então, se Jair Bolsonaro resolveu ameaçar a democracia na terça-feira gorda, que ninguém esperasse uma grande reação até a outra segunda. Puxada por Fernando Henrique, Ciro Gomes e o decano Celso de Mello, porém, ela veio. Seguiu o padrão: o presidente da República atacou — reproduzindo vídeo convocando para manifestação contra o Congresso dia 15 — os integrantes das instituições deram declarações duras em resposta e Bolsonaro aparentemente ensaiou um recuo. Não houve golpe e a vida segue.
Só que as coisas não funcionam assim. A cada um de seus arroubos antidemocráticos, que vêm se repetindo, Bolsonaro inocula uma quantidade maior do vírus golpista no corpo do sistema político — que, infectado, tanto pode perder os movimentos e deixar de funcionar como ser tomado por uma convulsão. Há um perigoso efeito cumulativo em curso. Ainda que não se chegue a nenhum dos possíveis, embora improváveis, desfechos extremos — de um lado, o golpe; de outro, o impeachment — a saúde da democracia e o funcionamento de suas instituições vão ficando profundamente abalados.
Em meio ao agravamento da epidemia de coronavírus (que já chega ao Brasil), à estagnação da economia, ao risco de alastramento de motins como o da PM do Ceará, e de tantos outros problemas, o que o país menos precisa hoje é de uma democracia doente. Mas é isso o que terá numa situação em que o governo virou sinônimo de instabilidade, o Legislativo e o Judiciário vivem acuados por ameaças de milícias digitais bolsonaristas e as elites, perplexas, a tudo assistem caladas em nome da suposta esperança de botar de pé a agenda liberal de Paulo Guedes.
Uma vã esperança. O próximo sintoma da infecção da democracia será a paralisação de tais reformas no Congresso. Quem terá sossego para negociar uma reforma tributária nesse clima? Ou tratar das medidas da reforma administrativa? Ou votar a PEC Emergencial para botar as contas públicas em dia e atrair investidores para o país? Não virão. No mundo de hoje, ninguém investe numa democracia débil.
Não há sequer certeza se dose mínima de antibiótico para sobrevivência será ministrada. Bolsonaro recuou mesmo, ou está pronto para mais uma transmissão virótica? É bom notar que o presidente tergiversou ao afirmar não ter mandado convocação pública para a manifestação, e sim se limitado a reproduzir em lista pessoal do Whattsaap vídeos que recebeu. A turma dos panos quentes espalha que ele proibirá ministros de convocar ou participar do ato anti-Congresso do dia 15. Mas tudo indica que continuará na torcida. Desavisada, a atriz Regina Duarte já se juntou aos bolsominions no chamado pelas redes. Eduardo Bolsonaro, o filho do deputado, também injeta doses de veneno nessas veias.
Talvez a única forma de debelar a infecção, a esta altura, fosse um gesto simbólico. Quem sabe a demissão do personagem que criou a confusão mais recente, o general Augusto Heleno, que acusou os congressistas de chantagistas e sugeriu que os apoiadores do presidente fossem às ruas. Mas isso não vai acontecer, e a democracia vai continuar com febre.
Helena Chagas é jornalista