Na escalada do confronto entre os poderes, a crise de hoje parece ser sempre pior do que a de ontem – e quando nossa meia dúzia de leitores estiver vendo isto, certamente outro fato chocante no campo institucional-político-policial já terá desviado as atenções. Mas é fundamental que todo mundo que tenha apreço pela democracia preste muita atenção na sequência dos últimos dias. Ela trouxe um ministro general ameaçando o país com “consequências imprevisíveis à estabilidade” caso o celular do presidente da República fosse apreendido pelo STF, o inusitado apoio do ministro da Defesa a essa posição e uma declaração do próprio presidente de que não entregaria o telefone, numa antecipada confissão de que, sim, o chefe da nação está pronto a descumprir uma decisão judicial se ela for contra ele.
O celular de Jair Bolsonaro não será apreendido, mas nem por isso dá para fingir que o episódio não aconteceu – e nem seus desdobramentos, sob a forma de protestos meio atrasados e não muito explícitos do Supremo e do Congresso. Foi tudo muito grave, mas a situação conseguiu ficar pior com as duas megaoperações da Polícia Federal, uma por ordem do Ministério Público Federal contra um desafeto de Bolsonaro, o governador do Rio, Wilson Witzel; outra determinada pelo ministro do STF Alexandre de Moraes, no inquérito das FakeNews, tendo como alvo parlamentares bolsonaristas, blogueiros e integrantes do chamado “gabinete do ódio” instalado no Planalto.
O placar está um a um. Só que o jogo da democracia não funciona assim. Tem regras que devem ser obedecidas acima de tudo e de todos – e sem jogar Deus no meio. O que estamos assistindo, aqui da arquibancada, é uma constante tentativa de subvertê-las. Jair Bolsonaro não aceita qualquer marcação do bandeirinha que não seja a favor do seu time. Não quer que o árbitro contabilize as faltas contra seus jogadores e nem os gols que eles levam. Instruiu seu time a empurrar, dar rasteiras e enfiar os dedos nos olhos dos adversários durante a partida e, agora, está estimulando a galera a dar sopapos no juiz.
Bolsonaro só sabe jogar assim, e quem o conhecia de antes tem perfeita noção disso, de sua disposição de rasgar todos os regulamentos e partir para a força bruta quando começasse a perder. Começou. Não há qualquer dúvida disso quando se vê o acúmulo de problemas políticos e econômicos. Muito menos sob os efeitos avassaladores de uma pandemia que atinge o mundo todo mas que, lamentavelmente, tem tudo para ser mais dramática ainda por aqui diante da inépcia e da ignorância de quem tem que tomar decisões sobre ela.
E como reage Bolsonaro diante desse placar a cada dia mais desfavorável? Agredindo as instituições da democracia – aquelas que lhe lembram que é preciso seguir as regras do jogo. Assim ele continuará fazendo: investindo contra as leis, tentando acuar adversários, conspurcando instituições que até ontem eram vistas como profissionais e independentes, como Polícia Federal e Ministério Público. Até um eventual impedimento.
Quem vai expulsar o presidente de campo? Bolsonaro faz agora dois movimentos para não levar cartão vermelho. Um acordo com o Centrão, que pode lhe dar os votos para rejeitar um impeachment na Câmara, numa jogada dentro das regras constitucionais. Além disso, já cercado pelos generais palacianos, incorporou agora a suas comitivas, inclusive nas incursões a aglomerações políticas de fim de semana, o ministro da Defesa, Fernando Azevedo – que outro dia saiu de sua posição discreta e institucional para apoiar a nota-arroubo de Heleno.
O presidente faz de tudo para passar a ideia de que tem as Forças Armadas a seu lado para o que der e vier, inclusive para melar as regras do jogo. Há controvérsias a esse respeito. Mas que o jogo está ficando pesado, está.
Helena Chagas é jornalista