Ter um ministro da Justiça suspeito de atentar contra a própria Justiça seria desconfortável para qualquer governante. Para Jair Bolsonaro, o episódio que animou os adversários é quase uma bênção, que realoca o debate para o campo simplista das paixões entre os pró e os contra a Lava-Jato. Um ambiente usado com sucesso na campanha, que dá ao presidente chances de voltar a ter nas mãos rédeas que andavam soltas.
Estrela de primeira grandeza do governo, o ex-juiz Sérgio Moro provocava sentimentos antagônicos ao capitão e em sua turma.
Mais popular que o presidente, Moro vinha amargando derrotas patrocinadas pelo chefe. Perdeu nos decretos de posse e porte de armas, que ele pretendia mais brandos, na manutenção do Coaf, que voltou para o Ministério da Economia, e até na simples indicação de Ilona Szabó para uma suplência do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. Seu pacote anticrime, enviado ao Congresso no início do ano, patina, e em prol dele o presidente jamais mexeu uma única palha.
Mas na semana em que o The Intercept revelou trechos nada republicanos das mensagens entre o ex-juiz e o procurador Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa da Lava-Jato em Curitiba, Bolsonaro se apressou em desfilar com Moro para cima e para baixo. Passearam de lancha juntos, vestiram a camisa do Flamengo no estádio Mané Garrincha, onde o capitão pode conferir o apoio ao paladino de Curitiba, traduzido em aplausos.
Nas redes, e também na mídia convencional, o agito da oposição, em especial do PT, canalizado para a ladainha do Lula Livre, ocupou espaços generosos, deixando em segundo plano as barbeiragens do governo, bipolar por natureza. Tão bipolar que conseguiu, por meio de declarações nada cordiais do ministro Paulo Guedes, transformar em derrota a vitória obtida com o relatório da reforma da Previdência na Câmara.
Na sexta-feira, Bolsonaro garantiu que a possibilidade de exonerar Moro é zero, colocando-se ao lado do herói ferido. Gestos que nenhum dos demais auxiliares saborearam. “Não houve maldade”, diz o presidente, que com a frase admite os pecados de seu ministro e a eles faz vistas grossas. Tudo teria sido feito em nome de expurgar o “câncer do Brasil, que é a corrupção”.
O tal dos fins a justificar os meios, princípio que já serviu a toda sorte de comportamentos espúrios. Petistas teriam roubado não para si, mas para o partido, a fim de garantir a permanência do “povo” no governo. Adhemar de Barros e depois Paulo Maluf roubavam, mas faziam. Tudo com apoio popular.
Nas contas do presidente, a defesa enfática ao ministro o coloca entre os bons, os que lutam contra a lama da corrupção. Aqueles que criticam o comportamento no mínimo aético do ex-juiz estariam no campo oposto. Repete a conhecida cartilha do nós x eles, utilíssima aos populistas de qualquer matiz ideológica e deletéria para o país.
O digladio entre lados não pode ofuscar o debate de fundo que tem de ser travado a partir das mensagens reveladas pelo The Intercept, que vão muito além da ilicitude do hackeamento, de Moro, Dallagnol ou Lula, que pode se achar mas não é o centro do mundo. São centenas de provas de roubalheira deslavada, milhões recuperados e outros tantos em processo de resgate, dentro e fora do país, condenações de gente graúda confirmadas em mais de uma instância.
Tanto Bolsonaro e sua oportuna verve pró-Moro quanto os que clamam pela nulidade de tudo para libertar Lula sabem que nada pode ser personalizado em um juiz. Mas cada parte, a seu modo, se aproveita dos rasgões na toga para costurar suas narrativas.
O país em farrapos que se dane.