por Editorial de O Estado de S. Paulo (24/3/2021)
Os governadores de São Paulo e Rio de Janeiro e os prefeitos das respectivas capitais – mas não só eles – demonstraram há poucos dias uma perigosa dissonância quanto às medidas a serem adotadas em nível estadual e municipal para conter o vertiginoso crescimento dos casos e mortes por covid-19.
O coronavírus é o grande beneficiário dessa falta de coordenação entre os entes federativos na definição de políticas públicas locais com o objetivo de frear a disseminação descontrolada do patógeno. O desencontro de ações governamentais é especialmente grave no momento em que o País atravessa a fase mais dramática da pandemia, com hospitais à beira do colapso, falta de insumos básicos para um bom atendimento médico e predomínio de contaminação por uma cepa mais contagiosa. O resultado é uma média móvel de mortes diárias por covid-19 superior a 2 mil.
No Estado de São Paulo, são 483 mortos por dia, em média. No Rio de Janeiro, 121. Os atuais patamares de média móvel de mortes diárias representam crescimentos de 62% e 31%, respectivamente, em relação à semana anterior. Ou seja, o momento impõe soma de esforços. Sem o acerto entre o governador paulista, João Doria, e o prefeito da capital, Bruno Covas, a tendência é de piora, não de melhora dos indicadores. O mesmo pode ser dito sobre as diferenças entre o governador fluminense, Cláudio Castro, e o prefeito do Rio, Eduardo Paes.
No caso de São Paulo, Doria não gostou de não ter sido previamente alertado por Covas sobre a decisão do prefeito de antecipar feriados de 2021 e 2022 como forma de aumentar o isolamento social na maior cidade do País. Uma decisão como essa de fato não deveria ser tomada sem levar em consideração os impactos que pode produzir nas cidades do interior e do litoral. Em boa hora, alguns prefeitos dessas regiões anunciam ações como fechamento da orla e do comércio não essencial, além da criação de bloqueios sanitários, como forma de evitar o afluxo de turistas oriundos da capital paulista.
No Rio de Janeiro, a situação é mais grave, pois disputas de natureza política contaminam ainda mais a definição das políticas de saúde pública. O governador Cláudio Castro é fiel aliado do presidente Jair Bolsonaro, ferrenho opositor de medidas que restringem a circulação de pessoas. Há dias, decretou um “superferiado” de dez dias no Estado, mas, ao mesmo tempo, autorizou que bares e restaurantes fiquem abertos até as 23 horas.
O prefeito Eduardo Paes, favorável ao endurecimento das medidas de isolamento nesta fase de recrudescimento da pandemia, batizou a decisão do governador fluminense de “Castrofolia”.
A hora é grave. Todos os que podem devem ficar em casa. Vidas dependem desse esforço individual, mas de inestimável benefício coletivo. É dever de governantes ciosos de sua grande responsabilidade, em todos os níveis, estimular o cuidado com a população, seja o individual, seja o zelo com o bem-estar coletivo.
Há quase um ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu – e reiterou o entendimento em diferentes julgamentos posteriores – que a Constituição estabelece competência concorrente entre União, Estados e municípios para definição das ações de combate à pandemia. Mas uma coisa é a autonomia dos governadores e prefeitos para decidir que medidas melhor protegem a saúde de seus governados. Outra, bem diferente, é lançar mão da faculdade para, ao fim e ao cabo, anular esforços de entes contíguos.
Uma pandemia, por óbvio, desconhece as circunscrições geográficas. Para ser debelada, é impositiva uma conjugação de esforços, inclusive em nível transnacional.
Além disso, o STF tomou a decisão que tomou imbuído do espírito de preservação da vida, um bem protegido pela Lei Maior. Ao reconhecer a competência concorrente dos entes federativos, a Corte não deu carta branca para que os governantes decidam de modo a pôr em risco direitos assegurados pela Constituição, entre eles a inviolabilidade da vida. Todos os níveis de governo devem agir em harmonioso acordo visando unicamente à saúde pública.