Ian Kershaw, em seu extraordinário livro Personalidade e Poder, analisa os três tipos de poder que definem o seu exercício: o poder pessoal, descrito por Max Weber; o poder infraestrutural, apontado por Michael Mann; e o poder despótico.
Acrescento aos três tipos o poder circunstancial, aquele decorrente de acontecimentos que levam os líderes a situações específicas e à tomada de determinadas decisões. Lembrando Ortega y Gasset, mencionado aqui em outras ocasiões, o homem é o homem e suas circunstâncias.
Nos últimos 100 anos, a política brasileira foi marcada por personalidades que deram o tom dos acontecimentos, já que eram mais fortes do que as instituições, caso de Getúlio Vargas, Ulysses Guimarães e Lula. Outros, como FHC e Michel Temer, estavam conciliados com as instituições e exerceram seu poder de forma infraestrutural. Todos, porém, foram afetados pelo poder das circunstâncias, que exerceram decisiva influência no seu sucesso ou no seu fracasso.
Podemos refletir que, se não tivesse havido a crise de Wall Street em 2008, o governo Lula 2 não teria conseguido eleger Dilma Rousseff, a partir da injeção de bilhões na economia e da sua recuperação extraordinária em 2010. Ou ainda: sem as manifestações de 2013 teríamos a Operação Lava-Jato? Afinal, a partir dos protestos, leis anticorrupção foram aprovadas no mesmo ano e reforçaram os mecanismos de combate ao problema, que desaguaram nas investigações de 2014.
“Bolsonaro teria sido eleito presidente em 2018 se não tivesse existido a Operação Lava-Jato?”
Daí se chega a outra indagação circunstancial: será que Jair Bolsonaro teria sido eleito presidente em 2018 se não tivesse existido a Operação Lava-Jato, iniciada em 2014? Claro que não. Esta coluna poderia enveredar, nesse ritmo, por tantos outros exemplos que fariam os leitores dormir. Mas, graças aos limites editoriais impostos, caminho para as conclusões finais.
O governo Lula 3 tenta combinar o poder pessoal e carismático do presidente com o poder coercitivo do Executivo. O Congresso reage com o uso do poder infraestrutural, que se manifesta pela força da instituição. O Judiciário, opaco até o fim do século passado, combina o poder infraestrutural com o poder coercitivo e, eventualmente, com o poder pessoal. Foi o caso do então juiz Sergio Moro, na época da Lava-Jato, e, atualmente, do ministro Alexandre de Moraes, da Suprema Corte. O poder pessoal no Judiciário é evidente também na profusão de decisões monocráticas.
A confusão política no Brasil de hoje resulta do embate dos tipos de poder que os grandes protagonistas desejam impor ao processo decisório em meio às circunstâncias. Que, por acaso, são outras daquelas verificadas nas administrações anteriores de Lula.
O poder no Brasil é uma tapeçaria em produção composta de retalhos de diferentes matizes e tessituras, os quais, aos olhos dos políticos e observadores daltônicos, é difícil distinguir e compreender. Mas, certamente, muito mais difícil de operar por aqueles que não percebem as fontes e características de poder no Brasil de hoje e a influência das circunstâncias sobre a realidade. Considerando as circunstâncias, o embate entre os tipos de poder, a força das instituições e as características pessoais das lideranças políticas, continuaremos avançando. Mesmo que aos trancos e barrancos.
Publicado em VEJA de 12 de julho de 2023, edição nº 2849