O declínio do cristianismo é patente em todos os países europeus, tendo adquirido características extremas nos domínios da Igreja Anglicana, cujo líder espiritual, Justin Welby, arcebispo da Cantuária, provou do próprio veneno: patrono de tantas causas woke, não escapou às conclusões sobre o acobertamento de um caso hediondo e serial de abusos contra meninos praticados por homem que criou um esquema de acampamentos ligados à igreja para facilitar sua tara.
John Smyth, da corrente evangélica, espancava barbaramente e violentava menores, usando uma organização cristã como fachada. Numa ironia que não é excepcional, participou de campanhas contra a homossexualidade. Quando os casos começaram a aflorar, mudou para o Zimbábue, onde continuou os abusos. Terminou na África do Sul, fugindo das investigações sobre a morte de um menino de 16 anos num de seus acampamentos. Teve o privilégio de morrer livre, em 2018, sem responder pelos 125 casos denunciados de crianças e jovens abusados.
Suas atrocidades já haviam começado a ser conhecidas em 1982. Até um futuro bispo anglicano, confissão também conhecida como Igreja da Inglaterra, Andrew Watson, foi vitimado. Contou em 2017 que havia sido surrado até verter sangue e que um amigo também vitimado havia tentado se suicidar.
O próprio Justin Welby havia frequentado os acampamentos dirigidos por Smyth, chegando a supervisor de dormitório. É acusado de, posteriormente, ter abafado o caso, garantindo a impunidade do monstro sadomasoquista que tanto mal causou a vítimas inocentes.. A divulgação de um relatório sobre o caso desencadeou pedidos de renúncia dentro da própria igreja e Welby resolveu assumir a “responsabilidade pessoal e institucional” pelo abafamento.
RACHA COM ROMA
Fez muito bem: nenhuma instituição, e muito menos as que se consideram representantes do cristianismo, deve esconder violências insuportáveis, como mostram os inúmeros casos ocorridos na Igreja Católica, que tanto contribuíram para a desmoralização da hierarquia religiosa.
O curioso é que Welby abraçou em sua carreira incomum – só foi ordenado depois de trabalhar durante anos na indústria do petróleo – inúmeras causas politicamente corretas. Apoiou a ordenação de mulheres e de uma transexual como bispos. Defendia o descontrole na imigração clandestina e o fim de investimentos até na própria indústria petrolífera.
Em vários sentidos, foi o precursor de atitudes que viriam a ser tomadas pela Igreja Católica – uma ironia, considerando-se que os anglicanos nasceram de um racha com Roma promovido por Henrique VIII, que queria um herdeiro homem e, em 1534, brigou literalmente com o papa para poder se divorciar.
Todo o patrimônio da Igreja Católica passou para a nova corrente, inclusive igrejas e catedrais prodigiosas. O rei se tornou o chefe da igreja, uma situação que continua, anacronicamente, até hoje. A autoridade espiritual máxima passou a ser do arcebispo da Cantuária, um posto que no passado foi ocupado por São Tomás More, morto exatamente por se opor a Henrique VIII, só para dar uma ideia de sua grandeza.
Em muitos e complexos aspectos, a história da Inglaterra continuou a ser marcada pelo confronto entre protestantes e católicos. Os rituais e os paramentos dos religiosos anglicanos continuam a lembrar muito o visual católico, com a diferença de que seus padres podem se casar.
RAVES NAS IGREJAS VAZIAS
Hoje, nada mais disso tem importância. As duas denominações estão decadentes, embora o declínio dos anglicanos seja mais acelerado – e o cristianismo avança apenas entre evangélicos sem medo de ter fé, proclamar isso e não ficar pedindo desculpas por erros do passado. Na Inglaterra, apenas 6% da população se declara anglicana praticante – a definição implica em ir à igreja pelo menos uma vez por mês e rezar ou ler a bíblia uma vez por semana.
Pela primeira vez, em 2021 menos da metade da população – 46,2% – se declarou cristã. Na categoria não religiosa, ficaram 37,2%. O número de muçulmanos obviamente cresceu. Em lugar das raves, que algumas paróquias pateticamente promoveram, as igrejas vazias podem virar mesquitas? Não é de todo impossível.
A confissão anglicana espalhou-se pelo mundo através do império onde o sol nunca se punha, alcançando Estados Unidos, onde ganhou o nome de Igreja Episcopal, Canadá, Austrália e diversas regiões da Ásia e da África. Num fenômeno que, de novo, a Igreja Católica reproduz, é em países africanos onde ainda prevalecem manifestações mais tradicionais do cristianismo.
PLACAS TECTÔNICAS
Welby, o arcebispo woke, foi uma figura fraca, com pouco peso intelectual e declarações até ingênuas, pelo desejo de agradar, como quando disse que “o pagamento de altos executivos nas maiores empresas é escandaloso e até obsceno”.
Desde quando o arcebispo tem que opinar sobre políticas salariais? Obsceno é ter pessoas ganhando muito pouco, por marginalização ou despreparo para o mercado, não ganhando muito. Estas não estão tirando daquelas e solidariedade cristã não deveria significar horror aos que ganham bem, numa glorificação da pobreza que tanto mal fez à Igreja Católica.
Embora não possa ser responsabilizado por mudanças nas placas tectônicas da história como o declínio do cristianismo e conte que despertou para a religião quando passou por uma reviravolta espiritual ao ter uma revelação – o papa Francisco diz a mesma coisa sobre a própria e rara experiência -, Welby não foi um grande defensor da fé.
Esse título é do rei e caberá a Charles, a quem ele coroou, indicar seu substituto. Fará pouca diferença numa igreja que já foi uma das colunas do império e hoje mal sustenta a si mesma.