Uma brincadeira inocente ou plágio sinistro da inteligência artificial?
A mania mundial de memes ao estilo de animação japonesa é associada a transformação de ideias artísticas em cópias toscas

Quem resiste a ver a si mesmo, ou a seus rebentos, com aquela cara de desenho animado japonês, de enormes olhos redondos e outras características inconfundíveis? Aparentemente, muito poucos.
Se você ainda não fez, possivelmente vai acabar fazendo – ou, mais especificamente, mandando a inteligência artificial fazer. O estilo é associado ao Studio Ghibli, uma produtora japonesa de filmes de animação venerados pelos apreciadores do gênero. O dono do ChatGPT, Sam Altman, tirou uma casquinha do sucesso dos memes na Índia, onde se propagaram em proporções condizentes com o da nação mais populosa do mundo, e “chateou” a si mesmo como um jogador indiano de críquete, um esporte venerado no país.
“Todo mundo quer ganhar o mercado indiano”, ironizou um comentário.
Quer mesmo – e não há nada de errado nisso. Mas seria ético usar a inteligência artificial para imitar um estilo criado por artistas de verdade? Qual a diferença entre parodiar o estilo do Studio Ghibli e pedir ao chatbox para mostrar você como se tivesse sido pintado por Van Gogh (depois de entregar uma foto, mas já está precificado que não existe mais controle sobre nossas imagens)? São obras de domínio público – embora o criador do Ghibli, Hayao Miyazaki, continue vivo, aos 84 anos.
E se um artista humano fizer a mesma coisa? Não pode ser acusado de plágio?
SINAL DAS DISRUPÇÕES
A onda em torno dos memes estilo Ghibli chegou aos profissionais de comunicação da Casa Branca, que ironizaram uma foto mostrando uma imigrante clandestina chorando ao ser presa pelo Serviço de Imigração.
A mulher, muito acima do peso e distante dos padrões de beleza, já tinha sido presa por tráfico, mas mesmo assim foi considerado cruel o uso de sua imagem. Prender alguém, cumprindo a lei, é uma coisa, humilhar é diferente.
E nem precisa dizer que provocaram enormes reações os memes das Forças de Defesa de Israel, mostrando jovens soldados em patrulha, com o comentário “Achamos que também deveríamos entrar na onda Ghibli”.
A onda mundial de paródias, na maioria das vezes inocentes, é apenas um sinal das disrupções que a inteligência artificial traz. Não é impossível que os instrumentos, em constante aprimoração, venham a escrever um conto ao estilo de William Faulkner, um poema à la João Cabral de Melo Neto ou uma aventura de Harry Potter tal como criaria J.K. Rowling.
ATÉ A CÓPIA É ELIMINADA
“Para produzir qualquer coisa, a inteligência artificial generativa precisa roubar material protegido por direitos autorais em escala inimaginável”, escreveu na Spectator o colunista Sam Leith. Na sua visão, o trabalho de uma vida inteira de Hayao Miyazaki e de todos os profissionais envolvidos em suas obras está sendo consumido de forma ilegítima.
Desse ponto de vista, a arte é bastardizada. A inteligência artificial elimina até o trabalho de cópia feita pela mão humana, o processo de aprendizagem com que tantos começaram nas artes visuais, imitando os grandes artistas – que também se imitavam entre vi. Basta um comando e pronto. Nada de processo criativo, erros e rejeições, busca de ideias originais e outros elementos do caminho da criação.
Vale a pena pensar a respeito porque praticamente todos os aspectos de nosso futuro vão ser progressivamente afetados pela inteligência artificial e a produção de conteúdo, no jargão contemporâneo, é uma das coisas que fazem com que nós sejamos nós, como criadores ou consumidores.
A onda Ghibli chegou a abalar a rede de servidores da OpenAI, dona do ChatGPT. Sam Altman comemorou: “Adoramos ver a explosão de criatividade – a Índia está ultrapassando o mundo”.
Mas quem são os criativos, os indianos ou a inteligência artificial?