Angela Rayner perdeu o charme equivalente ao de petista raiz: roupas informais, cabelos mal cortados e cara de quem precisava de um banho de loja. De repente, o banho aconteceu. Ela abandonou as leggings de oncinha e as botas de cadarço, começou a usar roupas com jeito de quem tinha uma stylist por trás, a bela cabeleira ruiva ganhou apliques e foi passar férias em Nova York, no apartamento de luxo de um milionário que banca mordomias para integrantes do Partido Trabalhista, incluindo roupas e até óculos para o primeiro-ministro Keir Starmer e sua mulher, Victoria.
Quem acreditar que são presentes desinteressados, feitos apenas por simpatias políticas por Waheed Alli, um empreendedor que criou programas bem sucedidos de televisão, tem direito a continuar morando no seu planeta bem distante da Terra.
O milionário, que já recebeu a honraria de integrar a Câmara dos Lordes e é chamado obsequiosamente de lorde Alli, manda nas pessoas que, no papel chamado constituição (algo difuso no Reino Unido), mandam no Reino Unido.
Atendeu tão bem a demanda por roupas novas e chiques do casal Starmer que, com a esmagadora vitória dos trabalhistas em junho, ganhou um passe livre para frequentar o discreto centro do poder executivo, o apartamento no número 10 de Downing Street.
Imediatamente, deu uma fresta de agradecimento a outros doadores de campanha. Nessa turma está Juliet Rosenfeld, viúva de um controvertido milionário, que proporcionou 7,5 mil libras (sete vezes mais em reais) a ninguém menos do que a parlamentar Rachel Reeves, agora ministra da Economia, cargo chamado pelos britânicos pelo chique nome de chanceler do Exchequer.
TRAMBIQUEIROS OU COISA PIOR
Quem ganha roupas, viagens e até um empréstimo sem juros como o de 1,2 milhão de libras feito à parlamentar Siobhain McDonagh, para comprar uma casa onde abrigar a irmã, doente, chama-se como no mundo das pessoas normais? Trambiqueiro, aproveitador ou até coisa pior. Na política, é corrupto. Mas as regras do mundo de Westminster são diferentes: basta declarar especificamente as doações e tudo bem.
Os casos mais escandalosos, como se as doações em si não bastassem, são dos que não declararam – exigindo uma retificação, como aconteceu com o dinheiro para roupas gentilmente doado para Victoria Starmer.
Angela Rayner não revelou que ganhou acesso ao apartamento de 2,5 milhões de dólares em Nova York, pertencente ao ubíquo Waheed Alli, para uma rápida viagem de lazer. Pega no pulo e ameaçada de investigação por oposicionistas do Partido Conservador, bateu os pés no chão – hoje não mais calçados por coturnos de cadarço.
“Acho que segui as regras. Entendo que as pessoas estejam frustradas, especialmente pelas circunstâncias em que estamos, mas doações de presentes, hospedagem e monetárias fazem parte da nossa política há muito tempo”.
LÍNGUA PRESA
É de um cinismo extraordinário, a ponto de uma deputada trabalhista ter reclamado que o partido foi fundado “para ajudar os outros, não para tirar vantagem” para seus integrantes. É também particularmente triste por causa da origem de Angela Rayner, que sempre se gabou de ser da classe operária, tendo nascido extremamente pobre, filha de uma mãe com sérios transtornos mentais. Aos 16 anos, foi mãe e parou de estudar, antes de iniciar uma carreira no sindicalismo (aos 37, já parlamentar, foi avó).
Starmer, sua mulher e a ministra da Economia são profissionais liberais, de extrato social diferente do de Angela. Hoje vice-primeira-ministra e ministra da Habitação, ela continua a cultivar o apelo ao povão e uma linguagem solta – enunciada com língua presa. Na época em que concorria ao Parlamento, alguns eleitores chegaram a reclamar que as roupas dela eram muito informais, não condizentes com o cargo.
Que falta faz a legging de oncinha agora que ela cedeu sem nenhuma resistência aos apelos do poder e do dinheiro. E do inefável lorde Alli, com sua carreira multiplamente bem sucedida: foi consultor financeiro, produtor de televisão de reality shows de sucesso e investidor em imóveis e vendas online – é dono da loja virtual ASOS, cheia de roupas baratinhas.
Ele está em seu papel: as doações a políticos não são ilegais. Fora de seu papel estão os que aceitam as mordomias, em particular no caso de um partido de esquerda, de raízes socialistas. E mais em particular ainda porque o governo Starmer está assumindo medidas impopulares, como cortar o subsídio anual a dez milhões de aposentados, muitos dos quais dependem dele para aquecer suas casas adequadamente no inverno.
DESMORALIZADO E HUMILHADO
Imaginem só os velhinhos correndo o risco de passar frio em suas próprias casas porque precisam economizar no caríssimo custo de energia, enquanto políticos de esquerda ganham roupas, viagens e outras mordomias que podem ser legais, mas não são éticas.
Até o apartamento de alto luxo de lorde Alli foi usado por Starmer para fazer um apelo durante a pandemia – se dependesse dele, o reino possivelmente continuaria de quarentena até hoje. O que haveria de errado em usar a própria casa ou um estúdio de televisão? E quem teve a brilhante ideia de colocar fotos da mulher e dos filhos dele, para realmente parecer que estava em casa?
Espantosamente, ele fez piada ontem ao receber empresários americanos na requintada residência do cônsul britânico “Gostaria de fazer de conta que o apartamento é meu”.
É, obviamente, revoltante e isso transpareceu na convenção dos trabalhistas, quando sindicatos propuseram que o corte do subsídio à calefação seja revertido – é como se a CUT se revoltasse contra o governo Lula da Silva.
Starmer já foi obrigado a dizer que não aceitará mais as doações para comprar roupas e até óculos, uma desmoralização humilhante. Quem não olha para ele e pensa que nem os próprios óculos o sujeito banca?
FOTÓGRAFO PARTICULAR
Angela Rayner – que sonha um dia ser primeira-ministra e Starmer sabe muito bem disso – não fez o mea culpa, mesmo tendo perdido o apelo de trabalhista raiz, com suas roupas populares que podiam muito bem ter sido compradas na ASOS.
Ela já havia se enrolado quando foi revelado que escamoteou impostos sobre a venda de uma casa comprada com subsídio à habitação popular. Agora, comanda o programa de construção de moradias para superar a grave escassez de lugares para morar num dos países do mundo onde isso é mais caro e inacessível.
Alguém acha que vai conseguir suprir a enorme demanda ou inventará algum pretexto furado para pôr a culpa nos conservadores malvados?
Mas, certamente, estará bem na foto: agora, só se movimenta acompanhada de um fotógrafo particular, um bonitão contratado a 68 mil libras por ano – obviamente, dinheiro público.
É mais um caso de hipocrisia galopante: quando o primeiro-ministro era Boris Johnson, o Partido Trabalhista criticava-o por usar fotógrafos nas mesmas funções. “Do as I say not as I do”. Nem precisa traduzir.