Se Putin está ganhando guerra da Ucrânia, por que mudar o time?
Ou mudou o time justamente por que está ganhando? As mudanças na nomenclatura da Defesa abrem uma série de incertezas

Vladimir Putin cultivava em Serguei Shoigu a coisa mais parecida que tem com um amigo. Passavam férias em pescarias e cavalgadas, além de certos rituais xamânicos, na região siberiana habitada pela minoria étnica entre a qual Shoigu nasceu, daí seus traços asiáticos. Muitas das fotos de um Putin descamisado, exibindo a masculinidade tóxica, são dessa época.
Uma época que passou, agora oficialmente, com a demissão de Shoigu como ministro da Defesa, um enigma que os novos cremlinologistas ainda estão tentando decifrar.
No campo de batalha, a Rússia está vivendo um momento ascendente, com avanços na região da cidade de Kharkiv – a mesma que simbolizou a retração diante de uma ofensiva ucraniana bem sucedida.
Hoje são os invasores que estão na ofensiva e as mexidas na estrutura da Defesa podem significar que Putin se sente suficientemente seguro para mudar até um time que parece estar ganhando. Ou seria ao contrário, um sinal de insatisfação?
Mais enigmático ainda é o substituto de Shoigu, o economista e matemático Andrei Belousov, que, segundo a versão oficial, deverá promover inovações na máquina de guerra e agilizar a burocracia.
CONDECORAÇÕES DECORATIVAS
Seja quem for, o ministro da Defesa não comanda tropas e campanhas militares, função que cabe ao chefe do estado-maior das Forças Armadas, que continua sendo o general Valery Gerasimov. Tanto Shoigu quanto Belousov são civis (o ministro demitido usava farda e condecorações mais decorativas do que efetivas).
Belousov falou em melhorar os padrões de atendimento aos combatentes, veteranos e suas famílias – uma fonte de permanente insatisfação, como em qualquer país em guerra do mundo.
Muitos analistas veem na nomeação de Belousov, um economista da escola intervencionista e até centralista, de tão triste memória, um sinal de que Putin está preparando mudanças maiores ainda no sistema econômico, prevendo não apenas uma guerra longa na Ucrânia como até um confronto permanente com países da Otan.
Putin está focado em “subordinar a economia às necessidades militares”, disse o New York Times. Exemplos de possíveis “subordinações”: aumentar os gastos públicos, subir impostos de grandes empresas e usar o fundo soberano alimentado pelo gás e o petróleo, as grandes riquezas russas vendidas agora para China e Índia.
Shoigu não foi para a aposentadoria: ganhou o cargo de direção de Conselho de Segurança Nacional, ocupado por Nikolai Patrushev. Considerado um eventual sucessor de Putin, Patrushev está “solto”, com cargo ainda a ser anunciado, um balé acompanhado pelos cremlinologistas interessados em decifrar tantos sinais aparentemente contraditórios.
Um general que trabalhava na área de recursos humanos do Ministério da Defesa, Yuri Kuznetsov, foi preso ontem, acusado de receber propina. Mas os especialistas dizem que acusações de corrupção, mesmo que verdadeiras, são apenas instrumentos políticos, usados em determinadas circunstâncias, uma vez que todo mundo rouba.
QUEBRANDO TABUS
Na frente de batalha, a iniciativa está com os russos, com a tomada de pequenas localidades em torno de Kharkiv, a segunda maior cidade do país, distante da meia-lua que está sob controle russo na fronteira oriental. A superioridade em número de combatentes e material bélico, sem falar na maior profundidade estratégica do mundo, está finalmente pesando a favor dos invasores. A retomada da ajuda americana ainda não está mostrando resultados.
“A Rússia não tem forças suficientes para tomar Kharkiv, mas este não parece ser o objetivo. O ataque russo provavelmente pretende desviar reservas ucranianas para Kharkiv”, disse ao Guardian o analista Michael Kofman.
Com dificuldades para convocar reservistas, a Ucrânia está sangrando, mas a guerra nem de longe foi resolvida. Só no domingo, a Ucrânia afirmou que foram mortos ou feridos 1 740 atacantes, um número sem precedentes para um único dia.
O tom de ameaças tem subido e o próprio Putin falou no maior dos tabus, uma guerra nuclear, caso haja intervenção direta na Ucrânia. Normalmente, ele deixa as ameaças apocalípticas para subordinados.
A mudança no time não altera nada disso.
Só para lembrar: quando Yevgeny Prigozhin, o chefão do Grupo Wagner, promoveu uma espécie de insurreição, o objetivo declarado era derrubar Serguei Shoigu. Achava que o ministro pegava leve e não apoiava suficientemente os combatentes. Prigozhin foi explodido num avião em que o excesso de autoconfiança o colocou como se pudesse contestar a ordem constituída sem consequências.
Mas o que ele mais queria acabou acontecendo.