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Revolta dos ignorantes: derrubar estátuas é apagar história

Nenhum herói resiste a uma boa biografia, escrita por terceiros, e isso garante que a onda de destruição de monumentos não terá limites

Por Vilma Gryzinski Atualizado em 10 jun 2020, 14h28 - Publicado em 10 jun 2020, 07h28
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  • Todo mundo que chorou, secreta ou abertamente, quando as estátuas de Lenin caíram junto com o fim do comunismo no Leste Europeu  agora defende com paixão a derrubada de estátuas de antigos personagens da história britânica.

    Se o comunismo tivesse, miraculosamente, sobrevivido mais cem anos, (toc, toc, toc) nem seria preciso tirar os Lenins de pedra ou de bronze.

    Virariam atração turística, testemunhas silenciosas de horrores cometidos pessoalmente ou em seu nome.

    Note-se que Lenin foi o único comunista histórico a sobreviver ao revisionismo stalinista. Todos os outros foram apagados das praças, ruas, livros e até fotografias.

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    A revisão histórica também acontece nos países onde o fuzilamento não é o destino dos que se apegam à versão “errada”.

    Mas o tempo e o conhecimento dão a perspectiva histórica necessária para permitir que as qualidades se sobreponham aos defeitos.

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    A onda de derrubada de monumentos tem o fato positivo de lembrar os defeitos de tantos homenageados obscuros que abriram os cofres para obras filantrópicas e garantiram seu lugarzinho histórico.

    Os fatos negativos são a ignorância, ao se usar padrões do presente para julgar o passado, e a imposição autoritária sem margem para discussão, praticada pela turba do tipo que laçou, derrubou e jogou no rio, em Bristol, uma estátua de Edward Colston, um nada notório benfeitor da cidade que também traficava escravos.

    Fora a garantia de que as estátuas ofensivas às sensibilidades políticas atuais passarão de personagens obscuros para os conhecidos. 

    E aí estará criada uma encrenca racial perigosa.

    Se quiserem derrubar o obelisco em homenagem a Washington – uma professora universitária que se diz arqueóloga tuitou um manual para isso -, muitos cidadãos brancos se sentirão ofendidos. 

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    Talvez até tentem proteger o monumento, o que já está acontecendo na Inglaterra, com a estátua de Churchill (pichada) e o memorial aos mortos de guerra (pichado, bandeira queimada).

    O critério de ter tido escravos elimina os maiores nomes dos pais da pátria, os visionários americanos que criaram um conceito que inevitavelmente levaria à abolição da escravatura, como os prodigiosos James Madison e Thomas Jefferson.

    O principal responsável pela abolição, Abraham Lincoln, eternamente sentado no coração cívico da capital americana, queria que os escravos, libertados por ele, voltassem à Africa.

    Vai escapar? Se permitirem, o que dificilmente aconteceria nos Estados Unidos, lá se vai o Lincoln para o descarte. 

    O de Mount Rushmore dará mais trabalho, mas os talibãs já ensinaram a tecnologia para explodir monumentos escavados na rocha, com a monstruosa destruição dos budas gigantes.

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    Na Inglaterra, com um governo acovardado a ponto de permitir que os pubs reabram antes que as escolas, a lista já está pronta: tem 80 itens.

    Alguns já estão sendo removidos, outros o serão. Inclusive com a participação entusiasmada do prefeito de Londres, Sadiq Khan.

    Também chamado de Can’t, por fazer de tudo para acabar com o trânsito de veículos particulares, ele criou uma Comissão pela Diversidade na Esfera Pública.

    Não precisa dizer mais nada. O nome já resume o espírito orwelliano da coisa.

    Ou seja, em vez de condenar a destruição de patrimônio público, o prefeito institucionalizou-a. E ampliou seu alcance, incluindo, além de monumentos, murais, nomes de ruas e placas comemorativas.

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    Virou lugar comum citar George Orwell, mas a genialidade do que escreveu no seu mundo distópico está mais pujante do que nunca.

    “Todos os registros foram destruídos ou falsificados, todos os livros reescritos, todas as pinturas foram repintadas, todas as estátuas e prédios renomeados, todas as datas públicas foram alteradas”.

    O revisionismo explícito pode criar problemas para Khan. Ele mesmo inaugurou em 2018 uma estátua de Millicent Fawcett, a primeira mulher a “entrar” na Praça do Parlamento, homenageada por sua campanha pelo voto feminino no começo do século XX.

    Problema: Millicent era uma entusiasmada súdita do império britânico, ao qual prestou serviços relevantes.

    Chegou a ser enviada pelo governo da época, em 1901, para verificar as condições dos boers, os descendentes de holandeses que estavam colonizando a África do Sul.

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    O conflito de interesses com os britânicos levou à guerra (na qual estreou um certo Winston Churchill) e à internação em campos de concentração de milhares de sul africanos, brancos e negros.

    Millicent teve uma impressão “geralmente favorável” dos campos e sugeriu que “hábitos de higiene” dos prisioneiros estavam na origem dos problemas de saúde.

    Morreram neles mais de 25 mil homens, mulheres crianças.

    A África do Sul também está ligada a heróis supostamente acima do bem e do mal, com a vantagem adicional de não serem brancos, o que não garante sua sobrevivência.

    Mahatma Gandhi não passa no crivo antirracista pela visão discriminatória que demonstrou quando morou na África do Sul (“selvagens” e “sujos” foram algumas das palavras usadas)

    A liga dos estudantes de Manchester pede desde o ano passado que a estátua de Gandhi, doada à cidade por uma organização religiosa indiana, seja derrubada.

    Criaram até a hashtag #GandhiMustFall. uma “honraria” reservada a figuras conhecida como o grão-colonialista Cecil Rhodes, cuja estátua logo, logo será retirada de Oxford – mas não o dinheiro que deixou para bolsas de estudos beneficiadas por nomes famosos.

    Os “caçadores” de estátuas da Inglaterra fizeram uma lista com nada menos que 60 nomes a serem varridos da esfera pública.

    Entre eles, um herói que todos os turistas já viram, Horatio Nelson, cuja estátua fica no alto da coluna de Trafalgar Square.

    O almirante que derrotou Napoleão – com um braço só – está na lista por “pecados” cometidos por seu pai.

    Outros: rei Charles II, Oliver Cromwell (o homem que mandou decapitar Charles I, pai do outro) o histórico bucaneiro Francis Drake.

    Nos Estados Unidos, o general David Petraeus assinou um artigo propondo mudar os nomes de bases conhecidas do Exército americano, como Fort Bragg, por homenagearem comandantes da época da guerra civil, quando os estados do Sul se recusaram a aceitar a abolição da escravidão e declararam independência.

    Admirado como líder militar e conhecedor de história, Petraeus pode ter uma certeza: nunca virará nome de nada.

    Teve que encerrar precocemente a continuação da carreira, como diretor da CIA durante o governo Obama, quando virou alvo de uma briga por ciúmes entre sua amante, a tenente-coronel Paula Broadwell, e uma outra potencial candidata à vaga.

    Ou talvez o tempo passe, suas qualidades excepcionais sobrepujem os defeitos e ele seja homenageado como nome de base, navio ou míssil. 

    Até que seja acusado como explorador de mulheres inocentes.

    Qual herói não tem telhado de vidro?

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