O príncipe Frederik e a mulher, Mary, que se tornarão reis da Dinamarca no próximo dia 14, chegam para um banquete no palácio de Christiansborg e dois criados de libré vermelha se inclinam profundamente à sua passagem, como se estivessem numa cápsula do tempo ou num filme da Disney.
A imagem de subserviência totalmente arcaica contrasta com a realidade. A realeza continua a dispor de palácios, joias e medalhas suficientes para condecorar um pequeno exército, mas a Dinamarca não só é uma das democracias mais exemplares do mundo, como tem o terceiro lugar no índice Gini de desigualdade, com 27,0 (contra 51,8 do Brasil; quanto maior, evidentemente, pior).
A renda per capita do país é de 67,7 mil dólares. Alguém consegue lembrar de algum bilionário dinamarquês? Não, embora existam (e três da lista sejam ligados aos brinquedos Lego). O país é igualitário, mas também capitalista, embora os mais adeptos do risco prefiram muitas vezes negócios além-fronteiras.
Outros países escandinavos, como Suécia e Noruega, têm o mesmo padrão de vida altíssimo – e seus próprios “reis de bicicleta”, o nome enganoso das famílias reais nórdicas, mas útil para comparar o estilo mais pé no chão com a grandiosidade que ainda cerca a monarquia britânica.
BAIXA CORRUPÇÃO
Holanda, Bélgica, Espanha e Japão são outros países com monarquias hereditárias que vivem despertando a mesma pergunta: existe uma relação entre realeza e desenvolvimento econômico e humano?
A resposta é provavelmente não. Estes países criaram economias avançadas com base no desenvolvimento industrial e agrícola e no extraordinário estabelecimento do estado de bem-estar social, em especial no pós-guerra. Partidos conservadores e social-democratas coincidiram nos projetos de prover escolas, saúde pública e amparo para todos.
Nos países escandinavos, com populações pequenas e mais homogêneas – portanto mais solidárias -, a ideia de cobrar impostos de arrancar lágrimas para sustentar as necessidades coletivas também foi amparada por baixos índices de corrupção. Pagamos caro, mas o dinheiro vai para o lugar certo tornou-se uma espécie de mantra coletivo.
O que as monarquias tiveram a ver com isso? Politicamente, nada. Reis e rainhas só sobrevivem em sistemas democráticos cultivando a neutralidade absoluta. Simbolicamente, é outra coisa. Incorporar tradições comuns que remontam a um passado mítico reforça o sistema de identidade nacional e até ajuda os países a se modernizar sem perder o senso de propósito comum.
DENTE AZUL
Muitos dinamarqueses adoram a ideia de que a sua monarquia começou com reis vikings como Harald Bluetooth (Blatand, no original, ou dente azul, nome no qual se inspiraram os criadores escandinavos do sistema wireless de circulação unificada de dados). Existem, na verdade, laços muito tênues, mais para invisíveis, entre o rei de dente estragado do século X com a atual dinastia, da Casa de Glücksburg, de origem alemã.
Na Espanha, a restauração da monarquia foi uma ideia franquista que deu certo, apesar da fortíssima tradição republicana. Juan Carlos II funcionou na consolidação da democracia pós-franquista e foi devidamente levado à abdicação quando seu mundo caiu, com a revelação sobre amantes e pagamentos milionários na Suíça. Um vexame que o filho Felipe VI tenta consertar até hoje.
Outra monarquia que sobreviveu devido a fatores externos foi a do Japão. O todo-poderoso general Douglas MacArthur era da corrente “retencionista”, ao contrário dos “abolicionistas”, e achou que a ocupação americana funcionaria melhor e com menos gente se Hiroíto continuasse como imperador e não fosse a julgamento por crimes de guerra, de nível de barbárie comparável ao Hamas, mas em escala muitíssimo maior.
Graças à visão dos americanos e à extraordinária capacidade de trabalho e sacrifício dos japoneses, deu certo. O Japão seria a quarta maior economia do mundo sem monarquia? Tudo indica que sim, mas é fácil hoje subestimar o seu papel na estabilização do país e na superação das dificuldades espantosas que o Japão enfrentou depois de perder a guerra, embora tivesse sido para os Estados Unidos, sempre uma vantagem.
REI TATUADO
A rainha que vai abdicar na Dinamarca, Margrethe II, deixa o trono com 82 anos e 80% de aprovação popular. Tudo indica que ela tenha planejado longamente a retirada, esperando o neto, Christian, fazer 18 anos, jurar fidelidade à constituição e se consolidar como herdeiro.
A Dinamarca vai ter um rei tatuado (um tubarão na perna direita, por ter se graduado no grupo de mergulhadores da Marinha, um feito considerado extraordinário) e uma rainha originalmente australiana, Mary, filha de escoceses. Corre a boataria de que a abdicação foi precipitada pela escorregada do futuro rei, fotografado em Madri com uma loira mexicana chamada nada menos que Genoveva Casanova. Mary o colocou na geladeira, mas a bronca parece ter sido superada.
É menos grave do que o que aconteceu com o ex-presidente argentino, Alberto Fernández, fotografado com a mulher num restaurante de luxo de Madri numa ceia de menu fechado a 1 155 euros por cabeça. Ele deixou a presidência no último dia 10, legando para os argentinos uma inflação de 200% e o aumento da pobreza na faixa dos 40%. Seu principal “feito” parecia não ter escândalos de corrupção. O jantar luxuoso acabou com essa ideias.
Este costuma ser o maior argumento dos monarquistas: um rei ou rainha é importante e rico o suficiente para não se deixar corromper ou influenciar. Pode desempenhar seu papel de chefe de Estado com independência, deixando a política aos políticos.
A tese é desmentida pelo espanhol Juan Carlos, mas não deixa de ter um certo apelo.
Países menos ricos, como o Marrocos e a Tailândia, têm reis e nem por isso estão na vanguarda do desenvolvimento. A monarquia parece assim o laço que enfeita o pacote – sem o conteúdo, ou bases econômicas sólidas, vale pouco. Com conteúdo, sobrevive até em sociedades igualitárias onde apenas uma minoria se contorce em surtos republicanos quando vê criados se curvando às cabeças coroadas.
O segredo é que os criados ganham bem e fazem a reverência porque escolheram sua profissão, não foram forçados a ela. Embora não exista um salário mínimo nacional na Dinamarca, sendo negociado setor por setor, ele costuma girar em torno do equivalente a 2,6 mil dólares. Dá uma inveja danada, com ou sem reis e rainhas.