Não existe RG nem CPF nos Estados Unidos e a ideia de que um cidadão tenha que ”mostrar documentos” em qualquer interação com entidades oficiais ou privadas é completamente estranha.
Também não existe título de eleitor, muito menos biometria – isso seria considerado uma invasão inominável da privacidade do indivíduo.
Para votar, as leis variam conforme o estado. Em alguns, vigora a “identificação estrita” – via, na maioria das vezes, carteira de motorista. Outros aceitam identificação sem foto, como um extrato bancário. E em outros não é preciso mostrar nada.
Do ponto de vista da experiência brasileira, parece absurdo que a identificação com foto provoque tantas reações negativas, mas isso deve ser visto da perspectiva americana.
Atualmente, por exemplo, existe uma campanha nacional de boicote contra o estado da Geórgia, onde já vigora o regime de identidade com foto, por alterações na lei eleitoral.
São mudanças que parecem apenas burocráticas, principalmente na votação por correio e na composição das comissões eleitorais.
Na prática, foram interpretadas como medidas dirigidas a restringir o acesso à votação do eleitorado negro, embora seja necessária uma lupa com lente bem politizada para fazer esta leitura.
Foi por causa dessa nova lei que a principal federação de beisebol, a Major League, conhecida pelas iniciais MLB, decidiu que não vai mais permitir jogos na Georgia.
Empresas importantes com sede no estado, como a Delta Airlines e a Coca-Cola, condenaram a nova legislação, indicando como o mundo corporativo está tendo que assumir posições políticas que, inevitavelmente, desagradam uma parte de seus clientes – no caso, o eleitorado republicano.
Num arroubo retórico, o presidente Joe Biden comparou a nova legislação a um “Jim Crown 2.0”.
Originalmente, Jim Crow era um personagem criado por um comediante popular que fazia uma versão exagerada e ridicularizada de um escravo negro.
Depois da guerra civil e da emancipação dos escravos no Sul, Jim Crow passou a designar todo o sistema de segregação racial, tanto declarado quanto implícito, que vetava a mistura da população negra com a branca em todas as instâncias públicas.
Quando se fala em direitos civis nos Estados Unidos, a designação abarca as garantias conquistadas por intervenção do governo federal para desmontar os mecanismos da segregação, principalmente através das escolas públicas, mas também em outras esferas, inclusive a eleitoral.
A era Jim Crow deixou uma herança pesadíssima e não só em imagens de grande poder simbólico, como a do bebedouro proibido para negros ou policiais com cães atacando manifestantes, mas por causa dos linchamentos sucessivos. A simples suspeita de que um homem negro havia falado com uma mulher branca podia desencadear atos inomináveis e jamais punidos de violência coletiva.
Do ponto de vista conservador, é um absurdo comparar a nova legislação da Geórgia com esta era tenebrosa.
“Qualquer um que faça esta comparação ou não entende a barbaridade da era Jim Crow ou a nova legislação”, escreveu Rich Lowry no New York Post, um dos raros órgãos de imprensa que não é progressista nem está na maluquice conspiracionista da direita aloprada.
O colunista enumera alguns componentes banais da nova lei, como a exigência de dar o número da carteira de motorista no caso dos votos por correio ou o prazo de enviá-los no máximo até onze dias antes da data da eleição.
Subjacente a toda a discussão está o fato de que muitos componentes da nova lei pretendem fechar vulnerabilidades à fraude alegadas pelo ex-presidente Donald Trump, que perdeu na Georgia por apenas 11 mil votos.
O que o beisebol, o esporte por excelência da classe média americana, tão frequentemente usado como metáfora da psique nacional, tem a ver com a história?
Os esportes – e também as transmissões esportivas – estão passado por um processo de politização que reflete o da sociedade em geral.
Os protestos de esportistas negros começaram com jogadores de futebol americano ajoelhando-se durante a execução do hino nacional, em protesto contra a violência policial. Os donos dos times correm atrás, pressionados pelo risco de serem chamados da pior das ofensas – racistas – e pelas personalidades públicas que exigem adesão.
Por que uma empresa aérea como a Delta, a maior empregadora da Geórgia, entra nessa briga? Por pressão, obviamente.
A empresa aérea e a Coca-Cola pronunciaram-se contra a nova legislação depois que executivos negros pediram publicamente que a grandes corporações se manifestassem. Mais de cem empresas atenderam.
Em resposta, Donald Trump propôs que seus partidários boicotassem essas empresas – no caso dele, que toma dez Cocas Zero por dia, um sacrifício enorme.
O New York Times, que obviamente se opõe com todo seu poderoso capital moral à nova lei, lembrou um episódio ilustrativo das complicações que acontecem quando as empresas se veem obrigadas a entrar em questões políticas.
Em 2018, a Delta encerrou a parceira com a NRA, a maior associação de defesa da posse de armas, depois da matança de estudantes numa escola da Flórida.
Em represália, os legisladores estaduais, onde os republicanos são maioria, aprovaram o fim de uma isenção fiscal à empresa aérea, no total de 50 milhões de dólares.
Tirar o beisebol dos torcedores georgianos pode funcionar nos dois sentidos: os que se opõem à nova lei eleitoral aceitam o sacrifício; os do lado oposto, se revoltam.
Nesse ambiente de alta polarização, não dá mais sequer para tomar uma Coca – ou deixar de tomá-la – sem que isso vire um ato político.