Palmas para os franceses: restauração de Notre Dame eleva espírito
E não apenas do país; todos têm motivos para se alegrar com a grandeza e a experiência única de ver recuperada uma catedral de quase 900 anos
Vamos convocar Victor Hugo, que escrevia muito melhor, a abrir os trabalhos: “A catedral de Nossa Senhora de Paris é ainda uma edificação sublime e majestosa. Mas, por mais bela que tenha se conservado ao envelhecer, é difícil não suspirar, não se indignar diante das incontáveis desfigurações e mutilações a que os homens e o tempo simultaneamente sujeitaram o venerável monumento, sem respeito por Carlos Magno, que lançou sua primeira pedra, nem por Felipe Augusto, que colocou a última”.
Com essas palavras, o genial escritor salvou da decadência, no século XIX, a prodigiosa igreja gótica – e abriu o romance O Corcunda de Notre Dame. Não é nenhum spoiler dizer que todo mundo morre no final do livro, lançado em 1831. A nova ressurreição de Notre Dame, como é universalmente conhecida, tem, ao contrário, um final que dá a todos motivos para celebração.
Sejam católicos os não, crentes ou materialistas, todos sentem os ânimos elevados quando entram numa igreja gótica, feita não para demonstrar a pequeneza dos seres humanos, mas a grandeza a que podem aspirar, o senso de missão dos que a construíram mesmo sabendo que não viveriam para ver o resultado final, a audácia de recriar o céu na terra.
Com mais de 15 mil igrejas listadas como monumentos históricos, a França tem catedrais mais imponentes, mais belas, mais espirituais do que Notre Dame, mas nenhuma ocupa o seu lugar no inconsciente coletivo como ela. Em vários sentidos, Notre Dame é o marco zero da civilização ocidental (é também o marco zero da cidade, literalmente).
“RESTAURAR A ETERNIDADE”
E sua restauração, depois da tragédia indizível de vê-la consumida pelo fogo em 2019, mostra o que essa civilização ainda consegue fazer quando realmente tem um sentido de propósito comum: restauradores, cientistas, artesãos, cidadãos comuns e milionários, funcionários públicos e anônimos juntaram conhecimento e mais de 800 milhões de euros para “restaurar a eternidade”, como foi qualificada o imenso trabalho de recuperação.
Famílias milionárias disputaram quem dava mais para o fundo de restauração. Os Pinault, pai e filho, do grupo Kering (Gucci, Saint Laurent, Bottega Veneta, Balenciaga, rede Printemps, para ficar nas marcas mais conhecidas), doaram 100 milhões de euros. Os competidores da família Arnault, do LVMH (Louis Vuitton, Dior, Fendi, Bulgari, Tiffany, Sephora), se tocaram e deram 200 milhões. Mais de 60 mil americanos fizeram doações variadas.
O Centro Nacional de Pesquisas Científicas criou uma Notre Dame virtual, um ambicioso projeto em que cada pequena pedra calcinada caída sobre o chão incinerado pelo chumbo derretido do telhado da catedral foi reconstituída em seu lugar original, para ajudar na restauração. Madeireiros garantiram – e cumpriram – que podiam fornecer as toras de carvalho perfeitamente retas para a restauração da “floresta”, a estrutura de cem metros de comprimento que segura o telhado com um engenho que ainda nos estarrece e foi inteiramente queimada.
NAVES DE PEDRA
A agulha de Viollet-Le- Duc, que tombou diante dos olhos estarrecidos do mundo no fatídico dia do incêndio, foi reconstruída exatamente como o genial restaurador do século XIX a concebeu. Muitos maçons sentem uma ligação visceral com a agulha, em cuja base havia uma pequena placa com o símbolo do compasso e do esquadro, que “nos indica a direção ascendente do espírito e da transcendência”.
Artistas e arquitetos queriam modernizar a catedral quase milenar, deixar patente as marcas do incêndio e de uma nova concepção, mas a lei – monumentos históricos devem ser restaurados com fidelidade – e a opinião pública, felizmente, não deixaram.
A opinião pública também não aceitou a proposta de Rachida Dati, a ministra da Cultura, de cobrar cinco euros de entrada numa das atrações turísticas mais frequentadas do mundo.
Notre Dame abrirá suas portas, gratuitamente, no próximo dia 8. Causará, sem dúvida, uma sensação de estranheza pelo interior onde as pedras são quase brancas, sem a pátina do tempo que nos acostumamos a ver nas catedrais,
Em quantos séculos a pátina será recuperada? Imaginar que não veremos isso nos aproxima dos construtores originais que trabalharam nas naves de pedra antes que fossem lançadas em direção ao futuro.