Nem em cinco mil anos alguém vai gravar um líder chinês dizendo que gostaria de ferrar com fulano ou sicrano. Muito menos agora, que o estilo diplomático apelidado de lobo guerreiro está em refluxo. Agressividade excessiva – ou excessivamente declarada – não foi uma boa política.
“Quando a ira se levanta, pense nas consequências”, dizia Confúcio (ou não; a lista de frases famosas que o sábio chinês nunca disse é maior do que as que disse).
O que não elimina o fato de que a China está vivendo um momento de apogeu dos planos geopolíticos traçados há uma década de se tornar a potência hegemônica e deixando isso cada vez mais claro.
Apesar da legendária discrição, os dirigentes chineses também têm seus momentos de franqueza e uma frase gravada de longe, no momento em que Xi Jiping se despedia de Vladimir Putin, foi reveladora.
“Mudanças que não aconteciam há cem anos estão chegando e nós estamos conduzindo estas mudanças juntos”, disse o líder chinês, numa frase que deixa entrever todo o pensamento estratégico que o levou a Moscou para se reunir com um acusado de ser criminoso de guerra, repudiado pelo mundo civilizado como sequestrador de criancinhas e assassino de civis inocentes.
A invasão da Ucrânia, do ponto de vista chinês, é uma oportunidade para enfraquecer os Estados Unidos – se a Rússia se ferrar, para usar uma palavra que os chineses nunca empregariam, melhor ainda, são duas potências se dando mal. O “plano de paz” que Xi pretende emplacar contempla a possibilidade de humilhar os americanos e deixar os russos de chapéu na mão. É um ganha-ganha para ele.
É claro que o Brasil faz parte do grande plano: tem os recursos tão necessários para ajudar a alimentar e mover o gigante chinês, é um aliado que está deliberadamente se afastando dos Estados Unidos mesmo depois de Joe Biden ter feito o L e não oferece nenhuma possibilidade de competir no que realmente interessa – indústria de ponta, alta tecnologia e material bélico de última geração.
Alguns editoriais escritos por Ding Gang, editor do Diário do Povo e integrante do Instituto de Estudos Financeiros de Chongyang, deixam entrever, com rara franqueza, o que a elite chinesa realmente pensa do Brasil. Ding Gang morou aqui durante três anos e levou as suas conclusões para o órgão oficial do Partido Comunista Chinês.
“O Brasil nunca teve uma indústria manufatureira forte e sofisticada. Mas a questão é: por que a China alcançou a industrialização enquanto o Brasil a abandonou e se moveu na direção oposta? Isso não é apenas uma questão institucional ou de economia”, escreveu ele em 2018, numa espécie de resposta a um editorial do New York Times que previa – erroneamente – um futuro “brasileiro” para a China.
“Pode soar racista diferenciar estágios de desenvolvimento com base na cultura. Mas depois de morar no Brasil por algum tempo, chega-se à resposta. Os brasileiros não se dispõem a ser diligentes e trabalhar duro como os chineses. Nem valorizam a poupança para a próxima geração, como fazem os chineses. No entanto, exigem os mesmos benefícios sociais que os dos países desenvolvidos”.
Continuando com o ataque de sincericídio, Ding Gang avalia: “A diferença fundamental entre Brasil e China reside no fato de que a cultura do Brasil torna o país inadequado para a manufatura. A ausência de manufatura não pode conduzir à industrialização e, em última análise, torna o desenvolvimento sustentável impossível. Consequentemente, a economia do Brasil depende apenas da exportação de matérias primas e commodities em estado bruto. Em outras palavras, recursos abundantes limitaram o desenvolvimento manufatureiro do Brasil”.
Muitas palavras gentis serão ditas durante a visita do presidente Lula à China – a primeira foi quando o presidente era Hu Jintao, em 2004 –, mas os verdadeiros sentimentos foram expressos por Ding Gang. Sem medo de “soar racista”, como no editorial acima, ele escreveu sobre as Olimpíadas de 2016: “Os brasileiros não ligam para as Olimpíadas? Ligam sim. Mas não se importam tanto se a linha do metrô do Rio estará pronta para os Jogos, se os estádios esportivos estarão prontos e se a glória e a fama do país serão defendidas. Seu maior foco é na alegria da festa”.
Quem viu certas instalações nas Olimpíadas de Pequim pode discordar, mas o editorialista insiste: “Os que querem desfrutar do mar, do céu azul e da praia no Brasil podem ter escolhido o lugar errado se demandarem eficiência e ordem”.
Imaginem se um americano tivesse escrito isso no Times. Certamente haveria urros de protestos e exigências de retaliação diplomática contra os imperialistas racistas. Atualmente, só se ouve aplausos e rapapés para a “diplomacia plural” que está levando o presidente à China, elevada à condição de primeira amiga.
É uma viagem obrigatória para todos os chefes de governo do Brasil. Mas sempre ajuda saber o que o anfitrião realmente acha do visitante.