O bombadinho do Vaticano e outras presepadas do momento
A censura do Facebook a uma cena de presépio é um dos atos de humor involuntário dos tempos atuais e seus exageros apaixonados
As obras de misericórdia física, ou de ajuda ao próximo em suas necessidades corporais, são conhecidas pelos bons católicos: dar de comer a quem tem fome, abrigar os necessitados, vestir os nus, visitar os doentes e os presos, enterrar os mortos.
Vai explicar para o Facebook – obviamente, não comandado por um humano em seus mecanismo de bloqueio – que exaltar tais virtudes foi a intenção do papa Francisco no presépio deste ano do Vaticano.
Feita do estilo popular e realista dos presépios napolitanos, a cena de vestir os nus caiu na censura do Facebook a imagens “sexualmente sugestivas ou provocativas”.
Em defesa do Face, é preciso reconhecer que o abdômen do despido, cercado pelos reis magos, tem mais gomos do que o de muitas feras da academia. E, vista com outros olhos, a cena toda tem algo de homoerotismo.
Por que substituir o presépio tradicional, com o Menino Jesus na manjedoura, é uma das muitas perguntas – ou , como diriam os latinistas, dubia – que o papa Bergoglio provavelmente nunca responderá.
Mas a censura ao presépio já tem seu lugar na longa lista de escorregões, confusões entre desejos e realidade, exageros politicamente motivados e humor involuntário, quando não pura maluquice, dos últimos dias.
Alguns assuntos do momento são realmente difíceis de deslindar. O bitcoin vai salvar nossas finanças ou nos empurrar para uma catástrofe maior do que a da bolha das tulipas?
O fim da neutralidade da net vai energizar o ambiente ou levar a ma catástrofe da liberdade digital?
Os pesquisadores americanos não poderão mais estudar os efeitos da zika em fetos afetados pela doença ou talvez haja algum exagero nas notícias sobre nomenclatura orçamentária?
E, acima de tudo, Donald Trump está a um passo do impeachment ou vai provar que foi vítima de um complô do FBI?
À exceção da criptomoeda, um enigma até para inteligências artificialmente turbinadas, as outras perguntas exigem uma certa contextualização.
A internet existia, funcionava e prosperava muito bem até 2015, quando a Comissão Federal de Comunicações aprovou a lei que ficou conhecida como neutralidade da net, regulamentando os provedores do serviço por assinatura.
O que vai acontecer se estes provedores começarem a diminuir a velocidade ou dificultar o acesso a conteúdos? Dificilmente terão consumidores satisfeitos.
Atenção: isso tudo é nos Estados Unidos. Ninguém está interferindo no maravilhoso, espetacular, eficientíssimo serviço oferecido aos consumidores brasileiros.
O assunto, evidentemente, atiça paixões, algumas do lado escuro da força. O presidente da FCC, a sigla em inglês da comissão de comunicações, é Ajit Pai, americano de origem indiana. Até os nomes dos filhos deles foram espalhados, entre outros abusos, muitos de cunho racial.
Fora a parte dos filhos, Pai levou a coisa na brincadeira e fez um vídeo de paródia sobre tudo o que as pessoas poderão continuar a fazer depois do fim da neutralidade.
Ou seja, exatamente tudo o que faziam antes. O vídeo foi tirado do ar durante algumas horas porque usava um trecho de Harlem Shake, um clássico das imitações.
Sobre Trump e as investigações de Robert Mueller, envolvendo altos agentes do FBI: a névoa da batalha ainda não permite garantir para que lado a coisa vai.
Mueller pode ter tido acesso a informações que comprometem irreversivelmente o presidente, seja em contatos espúrios com agentes russos para detonar a adversária Hillary Clinton, seja em manobras para acobertar atos suspeitos.
Mas o oposto também é possível. O mais habilitado investigador do FBI recrutado por Mueller, Peter Strzoc, pode ter contaminado toda a investigação por seu viés antitrumpista, revelado nas mensagens de texto que trocou com Lisa Page, a advogada e colega com quem estava tendo um caso.
E mais: Strzoc amenizou a linguagem do relatório final sobre os emails de Hillary Clinton quando era secretária de Estado, favorecendo-a já como candidata a presidente. Também pode ter feito outras manobras suspeitas ou até ilegais para espionar Trump e equipe.
Trump não leva nenhum jeito de herói perseguido, mas se houver vilões entre aqueles que os americanos sempre consideram os mocinhos será uma virada de novela.
Para quem acha que o presidente é unanimemente odiado por todo o aparato de segurança, a quem critica com a habitual e bizarra barragem de tuítes, um pouco de choque de realidade ajuda. Trump foi aplaudido de pé, aos gritos entusiasmados, na cerimônia de formandos do FBI.
Ah, sim, e as pesquisas do Centro de Controle de Doenças? Alguém imagina que sejam interrompidas?
A mudança mais importante, ou absurda, é mudar a expressões “embasado em evidências” ou “embasamento científico” para “o CDC baseia suas recomendações na ciência, levando em consideração padrões e anseios da comunidade”.
Não faz nenhum sentido e a revista Scientific American deu como exemplo a homeopatia, baseada “na falsa afirmação do benefício de substâncias superdiluídas e no princípio de semelhante se cura com semelhante”.
Centenas de estudos já desmontaram os argumentos a favor da homeopatia, mas tem gente “continua a acreditar em curas mágicas”, sibila a revista.
Sem querer, a Scientific American colocou os alternativos seguidores dos princípios estabelecidos por Samuel Hahnemann no século 19 no mesmo barco que os trumpistas. Só que o peladão do presépio para completar os tempos surreais que vivemos.