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Morto sem sepultura: Francisco Franco, um fascista de verdade

Ditador espanhol andava esquecido, mas governo socialista espanhol despertou o fantasma com projeto de mudar de lugar seus restos mortais

Por Vilma Gryzinski Atualizado em 31 out 2018, 10h30 - Publicado em 31 out 2018, 10h12
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  • O que fazer com Francisco Franco?

    O castigo maior talvez fosse deixá-lo no Vale dos Caídos, um monumento tenebroso onde jaz sob uma lápide granito de 1 500 quilos, visitado por poucos turistas, que entre tantas belezas históricas da Espanha resolvem ir exatamente naquela feiura cercada de más vibrações.

    Também aparecem por lá uns poucos seguidores. Depositam flores, fazem a saudação falangista e vão embora sem nenhuma outra consequência.

    A herança franquista praticamente sumiu como força política. Cada vez menos espanhóis tem uma lembrança direta do homenzinho de 1,63 de altura que morreu num gelado 20 de novembro de 1975, levando metade do país às ruas e a outra metade a celebrações quase secretas.

    “O gato está na caixa”, diziam, entre goles de champanhe, exilados espanhóis em Paris, usando uma expressão típica que não tem nada a ver com o gato de Schrödinger.

    Franco estava embalsamado o suficiente para as cerimônias fúnebres. Nada permanente como Stálin ou Evita, esta um atestado da herança hispânica de obsessão com os mortos, entre sequestros, desaparecimentos e inumações provisórias.

    Os embalsamadores, pai e filho, já estavam avisados do gravíssimo estado do caudilho e tinham tudo preparado.

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    Mas não foram eles que espalharam um boato dado como certo: Franco, como Hitler, era monórquido. Ou seja, tinha apenas um testículo. Provavelmente resultado de um ferimento de batalha sofrido na África, onde fez a carreira militar que o levou para o papel dominante nas convulsões políticas que resultaram na Guerra Civil espanhola.

    Os títulos inacreditavelmente pomposos viraram uma lembrança que parece até piada de filme de Woody Allen: Generalíssimo dos Exércitos, Presidente de Governo da Espanha, chefe de Estado e Caudilho da Espanha e da Cruzada pela Graça de Deus.

    A redemocratização da Espanha, com um monumental acordo entre a direita pós-franquista e a esquerda pós-revolução do proletariado, deixou Franco na geladeira do Vale dos Caídos.

    O governo do atual primeiro-ministro, Pedro Sánchez, resolveu fazer o que outros líderes socialistas prometeram e não conseguiram: transferir os restos mortais do caudilho para um lugar privado, eliminando qualquer caráter de honraria oficial ao morto.

    A decisão foi aprovada pelo Parlamento em outubro, três meses depois que Sánchez conseguiu os votos necessários para derrubar o primeiro-ministro Mariano Rajoy.

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    A manobra é perfeitamente válida pelas regras do parlamentarismo, mas inevitavelmente paira sobre Sánchez a ausência da chancela da votação popular. Por isso, ele quer resolver o “caso Franco” o mais rapidamente possível.

    O problema é como. A família obviamente não concorda com nada e propôs uma solução mais complicada ainda: a transferência dos restos mortais para o jazigo que tem na catedral de Almudena, bem no coração de Madri.

    Ou seja, os remanescentes do franquismo, poucos, embora barulhentos e reavivados com o separatismo catalão, teriam um lugar mais fácil ainda para eventuais homenagens e manifestações.

    A questão envolve as extremamente complexas relações com a Igreja espanhola e sua história de glórias e misérias, desde a unificação nacional conduzida sob a bandeira dos Reis Católicos (com a expulsão de mouros e judeus), passando pela Inquisição e desembocando nas barbaridades cometidas antes e durante a Guerra Civil.

    Não existe, obviamente, equivalência moral nesse caso: os nacionalistas deram golpes, desrespeitaram as urnas, praticaram massacres e implantaram uma ditadura de 35 anos. Eram os bandidos.

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    Mas os mocinhos do lado republicano também entraram com sua cota de horrores, especialmente dirigida contra os religiosos católicos, visceralmente identificados com o lado inimigo.

    O que os franceses fizeram no século 18, os espanhóis republicanos reproduziram no século 20. O levantamento mais aceito menciona 6 832 religiosos assassinados, incluindo 13 bispos, 4 184 padres, 2 365 monges e frades e 283 freiras. Sem contar a destruição de igrejas e de um insubstituível patrimônio histórico.

    É por isso que guerras civis têm um aspecto particularmente maligno: até os que estão “certos”, não só praticam abominações, como o fazem contra seus próprios compatriotas.

    João Paulo II iniciou o processo de beatificação das vítimas religiosas do Terror Vermelho e Bento XVI deu continuidade a ele. Francisco também entrou com sua cota.

    O papa argentino agora tem a batata quente de Franco nas mãos. Ninguém suspeita que alimente a menor simpatia pelo caudilho, mas o governo de Pedro Sánchez está querendo forçar a barra.

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    O secretário de estado do Vaticano, Pietro Parolin, desmentiu o anúncio feito pela vice-primeira-ministra Carmen Calvo de que a transferência dos restos mortais de Franco não seria feita de maneira alguma para o jazigo na Catedral de Almuneda.

    Persiste, portanto, a questão do que acontecerá com os restos mortais do homem que chegou a mudar o horário da Espanha, em solidariedade com a Alemanha nazista – o delirante gesto foi depois imitado por Hugo Chávez na Venezuela.

    Curiosamente, Franco nunca rompeu relações com outro ditador, Fidel Castro. “Os dois galegos, um que foi o mítico herói revolucionário do mundo e o feroz anticomunista”, segundo um historiador, admiravam-se mutuamente. Unia-os também o antiamericanismo.

    Franco nunca aderiu ao embargo contra Cuba. “O nosso fumo quem comprava era a Espanha; o açúcar cubano, a Espanha comprava; o rum cubano, Espanha”, disse Fidel na biografia de Ignacio Ramonet.

    Por motivos muito mais óbvios, o general Augusto Pinochet foi um dos poucos chefes de Estado estrangeiros que compareceu ao grandioso funeral de Franco – usando inclusive a capa até os pés que o Exército chileno copiou do espanhol.

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    Disse a um assessor do governo espanhol que sonhava com um monumento fúnebre como o Vale dos Caídos. Foi cremado, com as cinzas entregues à família.

    “Os fantasmas do passado sempre podem ser conjurados ou exercitados, mas não se pode anulá-los por completo ou fingir que não existiram”, escreveu o historiador  Enrique Moradiellos no livro Franco, Anatomia de Um Ditador.

    A rapidez com que a abertura passou a ser conduzida depois da morte do caudilho é “uma prova irrefutável do pronunciado anacronismo do regime franquista”, analisa Moradiellos.

    “Também permite compreender melhor o rápido manto de silêncio e esquecimento a que a figura de Franco foi submetida depois de sua morte.”

    Levantar este manto e tirar Franco da geladeira não está sendo fácil. Depois, ainda virá a transferência de José Antonio Primo de Rivera, o teórico do fascismo à espanhola cuja ideologia Franco incorporou.

    José Antonio era um marquês intelectual, cerebral e ousado – tudo o que Franco invejava. Foi fuzilado depois de assumir plenamente que havia conspirado para derrubar o governo eleito. Por causa dele, espalhou-se o hábito de dizer “presente” a um líder desaparecido em nome da causa. Está enterrado de frente para o altar do Vale dos Caídos.

    Eternamente reescrito, o passado é sempre cada vez mais complicado.

     

     

     

     

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