Deve ser bom ocupar o posto não-declarado de czar de todas as Rússias no momento. Vladimir Putin pode contabilizar mais uma vitória na sua lista nada modesta de realizações.
No ano passado, a repressão bem assessorada por Moscou acabou com a onda de protestos na Belarrus, impedindo que o país escapasse da esfera muito próxima de influência da Rússia. Depois foi a Ucrânia: a concentração de tropas na fronteira e a linha dura assumida por Putin estão perto de levar o governo de Joe Biden a negociar a instalação de mísseis em outro país que o czar contemporâneo considera “seu”.
Enquanto todo mundo estava olhando para a Ucrânia, explodiu uma onda brutal de insatisfação popular no Cazaquistão. Como em tantos outros casos, o motor foi o aumento no preço de um combustível, o gás liquefeito de petróleo que move os veículos num país riquíssimo em reservas fósseis.
Debaixo de neve e de uma polícia acuada pela quantidade de gente nas ruas, os protestos contra o aumento se transformaram em insurreição próxima de derrubar o regime. A prefeitura de Almaty e outros prédios do governo tomados e incendiados, além do aeroporto ocupado por manifestantes, levaram o presidente Kassym-Jomart Tokaiev a um último recurso: chamar os russos.
Aviões de transporte militar começaram a fazer uma ponte aérea, despejando 2 500 homens de uma “força de paz”, comandada pela aliança militar da Rússia com países centro-asiáticos que eram da antiga União Soviética e depois declararam independência, mas mantiveram laços próximos com a ex-matriz.
Tokaiev disse que não existia a menor possibilidade de “negociar com bandidos e terroristas”, uma insinuação de que extremistas muçulmanos poderiam estar insuflando a explosão de fúria popular. Dos 18 integrantes das forças de segurança mortos, três foram decapitados. A ordem de atirar para matar que o presidente deu foi um caso raro, mesmo em regimes autoritários, de repressão assumida, sem disfarces.
A maioria dos cazaques pratica uma forma bem branda da religião islâmica. Ridicularizado por Borat, o personagem cazaque inventado por Sacha Baron Cohen, o Cazaquistão é um país enorme – um terço do tamanho do Brasil -, sem saída para o mar, cheio de recursos valiosos como petróleo e urânio.
Entrou na era pós-soviética sob a mão dura de Nursultan Nazarbaiev, um ditador de manual: reeleito sistematicamente com quase 100% dos votos, colocou o próprio nome na capital do país, espalhou estátuas em louvor a si mesmo e arrebanhou fortunas para ele próprio, a família, os agregados e uma minoria de privilegiados.
Um retrato do que fazem o dinheiro fácil do petróleo e dos contratos com um governo de caixa cheio foi traçado recentemente em Londres. Um processo movido na justiça inglesa pela filha do meio do homem forte, Alia, contra os gestores de sua fortuna, acusados de desvios, mostrou que em 2006 ela retirou 312 mihões de dólares de recursos próprios do Cazaquistão e saiu gastando.
Comprou um jatinho Challenger, uma casa num bairro chique de Londres e uma mansão em Dubai. Tem milionário que põe dinheiro na Suíça, mas ela foi além e comprou um banco no país para administrar seus recursos (o processo terminou em acordo sigiloso).
Quais as qualidades de Alya para ter tanto dinheiro, além da aparente herança genética que leva tantos filhos de corruptos a mostrar uma impressionante vocação para fazer dinheiro fácil?
Já sua irmã mais velha, Dariga, estava sendo preparada para substituir o pai. Não deu tempo. Nazarbaiev foi convencido em 2019, nos bastidores, a passar o poder para um apaniguado, o presidente atual. Aos 80 anos, manteve o tratamento de “pai da pátria” e um lugar no conselho nacional de segurança.
Agora, foi afastado desse último posto oficial. A briga interna parece tão intensa quanto os protestos da semana passada. Na quarta-feira, o chefe do serviço de espionagem, Karim Massimov, foi tirado do cargo. No dia seguinte, já estava sendo acusado de traição. Ele era ligado ao ex-presidente Nazarbaiev, “sumido: durante a crise que teve uma das imagens mais fortes no ataque de manifestantes a uma estátua gigantesca dele.
Ajudar a controlar uma explosão como a da semana passada evidentemente dá pontos extras a Vladimir Putin e mostra como ele é um jogador de apostas altas. Se o timing fosse errado, ele afundaria tropas russas no atoleiro complicado de um conflito interno num país vizinho.
Agora, os “reajustes” internos têm mais margem de manobra e os seis mil presos depois da onda de protestos não podem esperar um futuro promissor. Segundo fontes do mercado financeiro, oficialmente desmentidas, os Nazarbaiev saíram do país na quarta-feira passada e foram para Moscou em cinco jatos particulares.
Nada que Putin não possa resolver brincando. O líder russo já conseguiu garantir a sobrevivência do regime de Bashar Assad na Síria, contra todos os prognósticos; engoliu a Criméia, sob protestos internacionais protocolares; segurou a onda de Alexander Lukashenko na Belarus; colocou a poderosa Alemanha como sua credora eterna com o gasoduto que proverá as luzes acesas nos lares germânicos e está conduzido os americanos para uma solução que o favorece na Ucrânia.
Nada mau para uma ex-superpotência que virou o século rendida pela dissolução econômica e institucional. Joe Biden que se cuide para não fazer concessões que soem sobre a Ucrânia que soem extraordinariamente parecidas com mais uma vitória da política externa intervencionista de Putin.