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Israel surreal: direita rachada, esquerda dividida e islamista com poder

Fragmentação política já é histórica, mas dessa vez pode acontecer o impensável, com união de árabes e judeus que se execram mutuamente

Por Vilma Gryzinski 2 abr 2021, 07h13
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  • “Agora é o momento de entendermos uns aos outros, de entendermos a narrativa do outro”.

    “Estendo minha mão para criar a possibilidade de coexistência nessa terra que é santa para as três religiões monoteístas”.

    “Não precisamos concordar a respeito de tudo e é claro que vamos discordar a respeito de muito. Mas precisamos dar aos nossos filhos a oportunidade, o direito de entender uns aos outros”.

    Quem disse estas palavras de derrubar queixos mundo afora foi Mansour Abbas, não um estadista experiente ou um líder admirado por diferentes tendências, mas um islamista que surgiu de repente na complicada constelação política israelense.

    Para entender melhor: islamistas como Abbas, relacionados à Irmandade Muçulmana, costumam estar entre os maiores inimigos de Israel, cujo direito a existir não reconhecem.

    Pois Abbas apresentou-se em seu discurso, transmitido ao vivo pela televisão, como um homem que tem orgulho de ser “muçulmanos e árabe, e um cidadão do Estado de Israel”.

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    Apenas estas simples palavras introduzem um fator simplesmente espetacular: um islamista que não quer explodir judeus israelenses ou varrer o país do mapa, mas participar do jogo político e nele ser aceito com todas as suas crenças.

    Abbas está sendo cortejado, mais ou menos explicitamente, porque seu partido, Raam, conseguiu eleger cinco deputados e se transformou no fiel da balança.

    A ideia de alianças heterodoxas está por toda parte, como uma tentativa de romper o impasse que quatro eleições em menos de dois anos não conseguiram resolver: nenhum bloco consegue votos para formar um governo estável.

    “Espero que os representantes eleitos ouçam o apelo do povo israelense em favor de coalizões fora do comum”.

    Assim falou o presidente de Israel, Reuven Rivlin, que geralmente só aparece em momentos como o atual: compete a ele ouvir os partidos e propor a uma ala que tente formar um governo. Se não der, a bola passa para o campo contrário.

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    O apelo de Rivlin foi interpretado como uma sugestão para que o campo do centro e da esquerda, altamente fragmentadas se alie aos partidos da direita nacionalista rompidos com Benjamin Netanyahu.

    Mas uma coalizão mais “fora do comum” ainda envolve Mansour Abbas, que se descolou da frente de partidos que tradicionalmente representam a população árabe israelense, identificados na origem com a esquerda e mais próximos da Fatah, a organização que controla a Autoridade Palestina.

    Com a vitória eleitoral, Abbas, que consagrou o slogan “não temos rabo preso com ninguém”, virou um personagem que parece ter sido criado por uma das excelentes séries de televisão feitas por israelenses.

    Sem o Raam, nenhum dos blocos consegue formar uma maioria estável. Com ele, ambos fazem uma aposta de alto risco, sujeitando-se, com razão ao rótulo de oportunismo da mais baixa estirpe.

    A linha da Irmandade Muçulmana, o influente movimento que surgiu no Egito nos anos trinta do século passado e procura liderar o islamismo conservador em vários países onde predomina a religião de Alá, é a mesma linha seguida pelos militantes no poder na Faixa de Gaza.

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    No papel ou num discurso histórico como o que fez ontem, Mansour Abbas aceita a existência de Israel e se declara um cidadão do estado que é anátema para os islamistas.

    Fora dele, é difícil acreditar nisso, embora a ideia seja incrivelmente tentadora.

    Em silêncio desde que a eleição criou mais uma situação de impasse, Netanyahu tem plantado através de representantes oficiosos que uma coalizão com o Raam não seria impossível.

    Se o impensável acontecesse, partilhariam o governo Israelense representantes da corrente político-religiosa muçulmana que nega o direito à existência de Israel e os sionistas mais extremistas, oriundos de dois partidos das franjas minoritárias que recusam liminarmente qualquer concessão territorial aos palestinos e advogam a exclusão total dos árabes israelenses que não sejam “leais” ao Estado de Israel.

    Na posição de fiel da balança, Mansour Abbas está aproveitando seus quinze minutos de fama – ou infâmia, dependendo do ponto de vista.

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    Já se reuniu com a frente de centro-esquerda, liderada por Yair Lapid. E não descarta uma abertura na direção de Bibi.

    Se houver um acordo, Lapid, ex-apresentador do principal noticiário da televisão israelense, seria o primeiro-ministro em sistema rotativo, dividindo o governo com Naftali Bennett, da direita nacionalista, que rompeu com Netanyahu.

    Ou seja, é difícil saber qual governo seria um bicho mais quimérico, juntando peças não só absolutamente incompatíveis como de uma total precariedade. Mansour Abbas poderia ameaçar romper com qualquer um dos blocos ao qual se aliasse ao menor sinal de divergência – e divergência é o que não faltaria.

    Imagine-se o que aconteceria no caso de um conflito com os islamistas em Gaza, com o Hezbollah no Líbano ou com os xiitas do Irã, as três frentes potencialmente explosivas, tendo um partido como o Raam integrando o governo israelense.

    O estilo abrasivo e imperioso de Bibi tem um grande peso na balança que criou esta situação surreal por ter expelido aliados de direita como Bennett e Avigdor Liberman, líderes vistos como competidores a ser eliminados. 

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    Agora, o primeiro-ministro acena a ambos, sabendo muito bem que eles já estiveram lá – num governo de coalizão – e não querem voltar de jeito nenhum.

    No regime parlamentarista, é normal fazer coalizões, principalmente quando não existem apenas dois partidos que se alternam, um sistema que predominou durante as primeiras décadas de existência do Estado de Israel, mas que refluiu quando a esquerda tradicional encolheu e a direita cresceu, abrindo espaço a novos partidos.

    O súbito aparecimento de Mansour Abbas e sua proposta de cooperação – “O que temos em comum é maior do que nos divide” – adiciona um novo e inesperado elemento num quadro político já complicado por si.

    Dá para acreditar nele? Esta é a pergunta que muitos judeus israelenses estão se fazendo. E que algum dos dois blocos em disputa terá que responder na prática.

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