A posse de Lula deveria ser o apogeu da esquerda latino-americana, com a presença maciça de irmãos ideológicos que celebrariam a identidade comum.
Só que deu um probleminha no meio do caminho e o Peru entrou em crise quando Pedro Castillo resolveu, canhestramente, desfechar um autogolpe que, por falta de apoio de todas as instituições, terminou com o presidente equivocado sendo preso por sua própria segurança.
Todo mundo viu o pronunciamento claramente golpista que ele fez pela televisão, pretendendo dissolver não só o Congresso como o sistema judiciário inteiro e governar por decreto.
Agora, três países com governantes de esquerda – México, Colômbia e Bolívia, mais uma Argentina algo envergonhada – tentam convencer que os nossos olhos nos enganaram: foi Castillo quem sofreu um golpe.
A coisa chegou a um nível de armação que o México concedeu asilo político à mulher e filhos de Castillo, acusados de corrupção. O Peru mandou o embaixador mexicano deixar o país.
Ironicamente, um tribunal de recursos havia acabado de encerrar o processo por corrupção contra Lilia Paredes, a mulher de Castillo.
A realidade fake inventada pelos esquerdistas parece piada. Gustavo Petro tentou vender esta versão com incrível cara de pau, mais uma prova de que a Colômbia está indo por um mau caminho.
“Eu não tenho elementos para dizer se é corrupto, o que se vê hoje é que não está processado por corrupção, está processado por rebelião, é um presidente que não está condenado por isso”, disse o colombiano, distorcendo os motivos da prisão do golpista fracassado. “Eu o vejo como uma vítima, o que está acontecendo é uma coisa que está matando gente, um presidente eleito popularmente que nenhum juiz condenou e que é capturado por sua própria escolta e levado preso”.
Parece o papa falando, com graves equívocos factuais e morais, do presidente eleito do Brasil.
Insuflar a versão de um presidente derrubado – pelas elites malignas, claro – reforça o sentimento de revolta que está provocando ondas de protestos nas regiões do Peru onde existe uma grande população indígena que, por motivos óbvios, se sente alijada das instituições dominantes e identificada com Castillo, sindicalista e professor rural da mesma esfera andina.
Existem também outras camadas de motivos alimentando as manifestações: a serra, como se diz na região, é infiltrada por grupos da esquerda armada e por diferentes organizações criminosas que promovem o cultivo, o transporte, o refino e a exportação da cocaína entre o Peru, a Bolívia e a Colômbia.
Na Bolívia, praticamente a cocaína tem livre trânsito. Nem a encenação de operações repressivas existe mais. Num discurso nada menos que delirante na Assembleia Geral da ONU, Gustavo Petro nada menos que defendeu a droga como instrumento de combate ao aquecimento global.
“Uma dessas plantas que absorve o CO2, entre milhões de espécies, é uma das mais perseguidas da terra e se busca sua destruição. É uma planta amazônica, a planta da coca, a planta sagrada dos incas”.
Precisa ser mais claro? Só os imperialistas mais mesmo para “perseguir” uma planta sagrada.
Os maléficos mecanismos do narcotráfico e os protestos aumentaram a explosiva instabilidade institucional vivida no Peru ao longo dos últimos anos, com presidentes sendo sucessivamente destituídos pelo Congresso e processados pela Justiça, tendo como elemento comum o sistema de corrupção instituído e exportado pelas construtoras Odebrecht e OAS.
A incompetência extrema de Pedro Castillo provocou um desenlace semelhante e ninguém espera que a nova presidente, Dina Boluarte, seja uma exceção nesse quadro de instabilidade extrema. Também é pouco provável que a convocação de eleições antecipadas, embora necessária, mude o panorama.
Triste é ver países como o México, a Colômbia e a Bolívia tentarem aumentar ainda mais uma situação de alta volatilidade. Os três países, mais a Argentina, que deu marcha a ré no meio do caminho, fizeram uma nota conjunta há dez dias, manifestando “profunda preocupação pela remoção e detenção” de Castillo.
O mexicano Andrés Manuel López Obrador falou em “golpe brando”, Petro em “golpe parlamentar” e o boliviano Luis Arce da “constante perseguição das elites contra governos progressistas”.
Note-se a ausência do chileno Gabriel Boric, que tem seguido uma linha diferente em relação à esquerda que nem finge ser democrática, provocando ataques de nervos em Nicolás Maduro.
A parte oficial de cerimônias de posse costuma ser enfadonha, mas o primeiro de janeiro poderá oferecer alguns movimentos interessantes.
Só não se deve contar com a presença de Dina Boluarte. A sexta pessoa a assumir a presidência do Peru em quatro anos sabe muito bem que, se sair do país, corre o risco de não poder voltar.