Joe Biden fez muito bem em usar a palavra genocídio para classificar os crimes inomináveis cometidos pela Turquia, num momento histórico de enormes mudanças, contra os armênios, uma minoria cristã que vivia principalmente na região da Anatólia Oriental.
A palavra genocídio ainda nem existia quando começaram as campanhas de deportação em massa através de marchas forçadas para fora do país, sob a acusação de que os armênios eram colaboradores da Rússia, a potência protetora dos cristãos ortodoxos, ela própria perto de entrar no grande abismo da revolução e dos massacres em massa.
Foi o judeu polonês Raphael Lemkin quem cunhou a palavra para definir o extermínio em massa de todo um povo promovido pela Alemanha nazista que ficou conhecido como Holocausto.
Mas o uso sistemático da violência para eliminar um povo inteiro é a única maneira de tentar entender o que foram as atrocidades coordenadas e sistematizadas para varrer os armênios não só do mapa da Turquia como da face da Terra.
Pelo menos 1,5 milhão de pessoas, civis arrancados de suas casas e privados de qualquer propriedade, foram obrigados a marchar em direção ao deserto da Síria, sem comida nem água, em condições atrozes, com o objetivo específico de que morressem no caminho.
As histórias são muito parecidas com as que viriam a acontecer entre os judeus da Polônia ocupada pelos nazistas ou entre os tutsis de Ruanda. Civis impotentes sendo massacrados em série, fuzilados, enforcados, violentados e obrigados a uma longa marcha de horrores.
Num dos episódios mais lancinantes, um comandante curdo exasperou-se com as crianças que teimavam em sobreviver ao martírio, tendo espantosamente chegado a pé até a Síria. Mandou encher um navio com elas, soltar a âncora e incendiar a embarcação.
Os executores do genocídio eram curdos, minoria étnica muçulmana que até hoje procura sua própria independência na Turquia e países vizinhos.
As ordens vinham de cima e eram incontestáveis. O ápice do genocídio dos armênios foi em 1915, quando a Turquia estava na transição entre o poderoso mas já alquebrado império otomano e a república laica que seria criada em 1923 e absurdamente envolvida do lado alemão na I Guerra Mundial. O processo se prolongou por anos.
Mesmo no caos que mudaria o mapa da Europa, as atrocidades contra os armênios levaram potências navais europeias a mandar navios tentando resgatar os refugiados que conseguissem chegar até as linhas costeiras. Frequentemente, eram estraçalhados a tiros de canhões turcos quando pareciam estar tão perto da salvação.
Depois da guerra, a Turquia encolheu e virou um país nominalmente laico, sob o comando férreo de Kamal Ataturk, que modernizou o país na marra. Muitos governos se sucederam depois e hoje o presidente Recep Tayyp Erdogan é um islamista mal disfarçado, que abomina o modelo de república laica.
Em comum entre todas as diferentes correntes política e religiosas existe a violenta rejeição a que sequer seja usada a palavra genocídio para definir o que aconteceu com os armênios há mais de um século.
Erdogan tem uma grande caixa de ferramentas para chantagear os países que ousam dar nome aos bois. A Turquia foi um aliado vital da aliança atlântica, a OTAN, na época da guerra fria com a União Soviética.
Continua a ocupar uma posição estratégica e a insinuar alianças com o Irã e a Síria. Tem ainda uma poderosa bomba humana: os mais de dois milhões de refugiados da guerra civil síria em seu território. Volta e meia, ameaça a Europa Ocidental com mais uma crise de refugiados se suas vontades não forem atendidas.
Quantas pessoas morreram no holocausto armênio? Os próprios armênios fecham com o número de 1,5 milhão. A Turquia diz que foram 300 mil. Uma associação internacional de especialistas em genocídio, a IAGS, considera que houve “mais de um milhão” de mortes.
Durante gerações, os armênios que se espalharam pelo Oriente Médio, a Europa, os Estados Unidos e o Brasil mantiveram viva a memória de uma das maiores monstruosidades da história humana. Os mortos inocentes merecem ser lembrados.
Usar a palavra genocídio para descrever o que sofreram não deve ser de forma alguma uma maneira de ofender as gerações atuais de turcos ou macular o orgulho nacional. Idealmente, a atrocidade dos antepassados deveria ser reconhecida, aceita e lamentada como um fato histórico doloroso.
Como estamos muito longe do ideal, é bom que os Estados Unidos tenham reconhecido uma realidade já incorporada oficialmente por países como França, Alemanha, Canadá e o próprio Brasil.
Depois de reclamar muito, como está fazendo agora com os Estados Unidos, o reconhecimento do genocídio é assimilado e a história some do mapa. Inclusive porque ninguém fala em indenizações, como no caso do extermínio dos judeus europeus.
Até que ressurja em outras circunstâncias. A terrível e maligna sombra do genocídio cujo nome os turcos se recusam a dizer não vai desaparecer facilmente.