“Eles têm capacidade de progredir e de realmente começar a bloquear alguns avanços do Talibã”. Esta foi uma das muitas avaliações enganosas que o secretário da Defesa, Lloyd Austin, fez sobre o espírito de combate do exército afegão.
Três semanas depois, os talibãs estavam sentados no palácio presidencial de Cabul e Austin, com todas as quatro estrelas que acumulou em todos os postos mais importantes do Exército quando na ativa, corria atrás do prejuízo.
E que prejuízo: uma retirada apressada e humilhante, como se os Estados Unidos tivessem sido derrotados pelos guerrilheiros maltrapilhos – o que não aconteceu, apesar da impressão indelével de vexame na saída e erros gravíssimos no planejamento de contingências, sendo este quesito um dos mais importantes elementos na condução de qualquer exército, que dirá o da maior superpotência da história.
Austin, um homem de quase dois metros de altura que estava fazendo o que os oficiais estrelados fazem depois de aposentados – ganhando dinheiro na Raytheon, a gigante dos armamentos – quando Joe Biden o chamou para ser o primeiro negro a assumir como secretário da Defesa, é agora um dos dois alvos de críticas revoltadas de generais inconformados com a vergonha nacional no Afeganistão.
O outro é o general Mark Milley, o chefe do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas, o cargo mais importante na hierarquia militar.
Numa carta assinada por 87 generais e almirantes da reserva, os dois são acusados de não assumir a responsabilidade “por essa debacle trágica e evitável”.
“Se eles tivessem feito tudo o que estava a seu alcance para impedir essa retirada precipitada e o presidente não tivesse aceitado sua recomendação, então deveriam ter pedido demissão por questão de consciência e de postura pública”.
Os generais de pijama, evidentemente, têm razão, embora na vida real as coisas não funcionem exatamente assim. E embora tenham uma visão política caracterizada pelo viés de direita que já os aproximou de posições similares às de Donald Trump. Guardadas todas as enormes proporções, são como os generais do Clube Militar do Rio de Janeiro.
Não é nenhuma surpresa que altos oficiais tenham simpatias políticas, embora, como em qualquer democracia, não possam assumi-las quando estão na ativa.
Antes de serem sugados pelo desastre afegão, que agora tentam ridiculamente apresentar como um um “sucesso extraordinário”, nas palavras orwellianas do presidente, Austin e Milley estavam dançando conforme a música dominante no governo Biden, dedicando tempo e energia a cursos de “conscientização”, a patacoada doutrinária que virou lugar comum nos Estados Unidos.
Os generais da carta aberta, reunidos num grupo chamado Flag Officers for American, tocam em todos os pontos sensíveis do desastre afegão.
“As consequências desse desastre são enormes e vão reverberar por décadas, a começar pela segurança dos americanos e afegãos que não conseguiram chegar aos pontos de evacuação; tornando-se, portanto, reféns de facto do Talibã”.
“A morte e tortura de afegãos já começou e resultará numa tragédia humana de grandes proporções. A perda de bilhões de dólares em material bélico avançado que caiu nas mãos de nossos inimigos é catastrófica. O prejuízo para a reputação dos Estados Unidos é indescritível”.
“Acima de tudo, agora nossos inimigos estão se sentindo encorajados a agir contra a América devido à fraqueza demonstrada no Afeganistão”.
Os generais revoltados expressam um sentimento que não parece incomum entre militares da ativa, embora apenas um único oficial, o tenente coronel Stuart Scheller, tenha se manifestado publicamente – já sabendo que seria afastado de seu posto de comando.
Como militares experientes do calibre de Lloyd Austin e Mark Milley, com conhecimento das realidades locais do Iraque e do Afeganistão, onde ambos serviram, podem ter se enganado tanto, a ponto de serem pegos de surpresa pelo derretimento fulminante do exército afegão e o avanço dos talibãs sem qualquer resistência?
É possível que, como peças de qualquer burocracia, tenham ficado com receio de dizer a verdade, ainda que desagradável?
Numa reportagem espetacular sobre as condições que levaram à derrocada súbita e irreversível, o Washington Post descreve como o presidente Ashraf Ghani – o que fugiu de helicóptero sem sequer avisar os americanos – parecia descolado da realidade a ponto de, enquanto os talibãs avançavam, preferir falar de seu projeto predileto, o da digitalização da economia afegã.
Mas o descolamento não era só dele. Apoiado em avaliações dos serviços de inteligência, Joe Biden fez os mais absurdos prognósticos sobre a capacidade de resistência das forças do governo afegão.
“Em junho, os serviços de inteligência avaliaram que o governo afegão aguentaria por pelo menos mais seis meses. Em agosto, a posição dominante era que o Talibã não representaria uma ameaça séria a Cabul pelo menos até o fim do outono”, resume a reportagem do Post.
Para complicar, os acontecimentos se precipitaram exatamente no período da segunda quinzena de agosto em que todo mundo sai de férias. Biden estava em Camp David, a casa de campo dos presidentes americanos. O secretário de Estado, Antony Blinken – que é sócio de Lloyd Austin num banco de investimentos -, estava nos Hamptons, a praia dos milionários americanos.
Ainda por cima, a tomada de Cabul caiu num sábado.
Segundo a reconstituição do Post, foi Austin quem pediu que todos os funcionários da embaixada americana fossem imediatamente para o aeroporto de Cabul e não contemporizou com o pedido de que houvesse um prazo maior para dar tempo de incinerar todos os documentos e discos rígidos de computadores.
Em Doha, no Catar, onde esperava o momento certo para a volta triunfal, o líder talibã Abdul Ghani Baradar propôs ao general Frankie Mackenzie: os americanos assumiam a segurança de Cabul ou os talibãs fariam isso.
Seguindo a orientação de Biden, de que a única missão era a retirada, o general, chefe do Comando Central, o mais importante, recusou a oferta de Baradar. Deu no que deu.
A responsabilidade final pelos erros dos últimos dias de Cabul é de Joe Biden, mas os generais do Flag Officers têm razão quando argumentam que “um princípio fundamental das forças armadas é que aqueles em posição de comando assumam a responsabilidade por suas ações e inações”.
Lloyd Austin e Mark Milley não o fizeram. O nome disso é desonra – uma palavra que dificilmente vai constar dos livros lucrativos que escreverão depois de deixar seus postos.