É difícil agradar todo mundo quando se tem uma clientela na casa do bilhão. E quando os limites da liberdade de expressão são testados constantemente por uma tempestade de provocações, xingamentos, ameaças, teorias conspiratórias, radicalismos políticos nos dois extremos do espectro e a boa e velha manipulação. Isso para ficar nos humanos, sem entrar no campo dos bots.
Como o Facebook e seu irmãozinho Instagram têm uma penetração sistêmica que vai até a alma dos usuários, os insatisfeitos não pensam simplesmente em se desligar ou partir para outra: querem mudar a própria essência da rede.
Ou ficar bem na foto, passando-se por aliados de causas progressistas como fez Kim Kardashian. “Não posso me calar quando essas plataformas continuam a permitir a disseminação do ódio, da propaganda e da desinformação – criados por grupos que semeiam a divisão e querem rachar a América”, escreveu Kim.
A valorosa Kim aderiu a um “boicote” de 24 horas – um prazo doloroso para quem ganha um milhão de dólares por postagem de produtos no Instagram. Ou deixa dizerem que ganha para incentivar os lances.
Como Kim Kardashian é uma das mulheres mais inteligentes do mundo, tendo triunfado na carreira de celebridade sem atuar, cantar, dançar ou desfilar, na base de abertura irrestrita da intimidade e modificações corporais extremas, chegando a uma fortuna avaliada em 900 milhões de dólares, é bom escutar o que ela tem a dizer.
Kim está brava com os grupos acusados por organizações negras que lançaram a campanha #StopHateForProfit de insuflar a discriminação racial e espalhar discurso de ódio. Como a época é de campanha eleitoral, as eleições dominam tudo. Um dos objetivos dos grupos que promovem o boicote é controlar os anúncios de campanha de Donald Trump.
Jessica González, da organização Free Press (nem precisa dizer que, nesses tempos orwellianos, o objetivo é controlar a informação) apresentou numa reunião com Zuckerberg e Sherryl Sandberg, a longa lista de assuntos que gostaria de ver censurados:
“O genocídio do povo Rohingya em Miamar, os milhares de anúncios políticos pagos que desumanizam e instigam medo de imigrantes e pessoas marrons, o apelo do presidente Trump para que os agentes da lei atirem em pessoas negras, os protestos armados em mesquitas organizados via Facebook e a desenfreada atividade de organização e recrutamento de supremacistas brancos que continuam ativos na plataforma”.
A campanha de boicote a jato promovida por celebridades incluiu as modelos Cara Delevingne e Naomi Campbell, Orlando Bloom e Kate Perry, Jennifer Lawrence e Amy Schumer.
E, claro, Leonardo DiCaprio, o ator que, quando não está apagando os incêndios florestais na Amazônia, está corajosamente interrompendo suas redes pelo pesadíssimo período de 24 horas.
O Facebook já usa algoritmos para detectar discursos de ódio em 40 línguas, tem um exército de checadores – muitos com o viés contrário, de simpatia pela esquerda – e gritou um “supremo tribunal” para julgar os casos mais graves, com vinte integrantes, inclusive o brasileiro Ronaldo Lemos, do Marco Civil da Internet.
Assim definida, com uma perspectiva de direita, por Sheryl Atkinson no RealClearInvestigations: “Dos 20 integrantes do Conselho de Supervisão, 18 têm ligações com as Fundações Sociedade Aberta de Soros, que já gastaram bilhões em iniciativas globais advogando agressivamente em favor do lado progressista em assuntos que vão da política de imigração a clima e aborto, gênero e políticas raciais”.
Um dos nomões do Conselho é Alan Rusbridger, ex-diretor de redação do Guardian, o ótimo jornal que é a mais cristalina encarnação de todas as causas de esquerda.
Ele teve uma participação importante nos vazamentos de Julian Assange e Edward Snowden. É difícil imaginá-lo falando a favor da liberdade de expressão da direita brava que ainda frequenta o Facebook, embora uma parte tenha migrado para outras bandas.
Uma das mais recentes – e comentadas – “intervenções” do Facebook foi colar o rótulo “Falta o contexto” num anúncio pago por um PAC republicano, PACs os comitês que bancam parte dos grandes gastos de campanha, um modo de contornar os limites de doações políticas individuais.
O anúncio, voltado para os eleitores do estado de Michigan, mostra meninas adolescentes disputando uma corrida que, no fim, é vencida por um rapaz.
É, obviamente, uma alusão à participação de mulheres trans em competições femininas, associada no anúncio ao candidato democrata ao Senado e a Joe Biden.
Transformar o Facebook em árbitro do que pode e do que não pode, ou seja, o juiz supremo da liberdade de expressão, é uma das atitudes mais estonteantemente perigosas dos tempos atuais.
E, como a guerra que é importante demais para ser deixada nas mãos dos generais, implica em campos tão vitais que não pode ficar a cargo de Mark Zuckerberg, por mais genial que seja.
Quando outros gênios, os pais da pátria americana, escreveram há 230 anos que “Nenhuma lei será aprovada no Congresso abrangendo a liberdade de expressão”, criaram uma fórmula à prova de governos, políticos, movimentos populares e militâncias variadas.
Como conciliar este pilar supremo da democracia com redes sociais onde pedir a cabeça – literalmente – de um desafeto político, convocar manifestações violentas ou reproduzir invenções mal intencionadas de bots são atividades banais?
Nessa, nem Kim Kardashian ajuda.