O pessoal do mercado financeiro está “dançando nas ruas”, na descrição de quem entende disso, Jamie Dimon, o guru do JPMorgan Chase, atletas de diferentes esportes estão imitando a desajeitada dancinha de Donald Trump e a imprensa americana está procurando abusos sexuais comprováveis de pelo menos três indicados para o futuro governo. Uma vitória rápida e contundente: Matt Gaetz foi forçado a retirar a candidatura, inviável, a chefiar o Departamento da Justiça de Trump.
Ou seja, tudo nos conformes, imprensa tem mesmo que fiscalizar e que não passa no crivo, dança – e não ao ritmo daqueles passinhos de tiozão de Trump. Fora de qualquer padrão, sem nenhum precedente sequer próximo, é o papel dado a Elon Musk, o de cortar despesas desnecessárias e racionalizar o funcionamento da máquina do governo.
Nem Leonardo Da Vinci, em seus dezessete anos a serviço de Ludovico Sforza, o duque de Milão, teve missão parecida. Por mais genial que fosse, era um empregado, não um súbito amigo, parceiro e aparentemente influencer como está acontecendo com Musk. E tinha que pintar divinamente e desenvolver máquinas de engenharia civil e bélica, não cortar o orçamento dos venerados veteranos de guerra ou tirar o leite das criancinhas num programa pré-escolar, tal como a “missão motosserra” de Musk é pintada pela mídia inimiga.
Já os amigos – e não os faltam a quem tem 318 bilhões de dólares, mais do que o PIB de Portugal – estão empolgados. Assim descreveu-o o apresentador britânico Piers Morgan: “É um gênio incisivo, charmoso, engraçado, combativo, sem paciência com idiotas, com um foco a laser para nos salvar de nós mesmos e o nosso planeta da destruição através de seus carros elétricos, foguetes espaciais, chips cerebrais, defesa da liberdade de expressão, plano para colonizar Marte, missão pessoal de reverter o declínio da população global (tem doze filhos) e, agora, enfrentar os desperdícios da burocracia do governo americano”.
Por que correr o risco de uma missão tão fora de sua vastíssima esfera de atividades, dando uma de Javier Milei anabolizado (na descrição de seu parceiro, Vivek Ramaswamy)? E sem os votos que dão legitimidade ao presidente argentino?
“EQUIPE DE CRUZADOS”
“A burocracia entranhada e sempre em expansão representa uma ameaça existencial para nossa república”, escreveram os dois bilionários (Vivek, mais modestamente, na casa de um bilhão), no Wall Street Journal, sobre o Departamento de Eficiência Governamental, um órgão ainda fictício com o acrônimo engraçadinhos DOGE. “Somos empreendedores e não políticos. Serviremos como voluntários externos, não como funcionários ou empregados federais”.
“Não vamos apenas escrever relatórios e cortar fitas. Vamos cortar custos”.
“Estamos ajudando a equipe de transição de Trump a identificar e contratar uma equipe enxuta de cruzados do estado pequeno, incluindo algumas das mais atiladas mentes técnicas e jurídicas da América. Esta equipe trabalhará no novo governo com o Departamento de Administração e Orçamento da Casa Branca”.
“Nós dois assessoraremos o DOGE a cada etapa para buscar três grandes tipos de reformas: rescisões regulatórias, reduções administrativas e economia de custos”.
“SEGREDINHO SUJO”
Numa entrevista à Fox, Vivek, como é conhecido, que ficou rico no ramo da biotecnologia e tem uma extraordinária capacidade de comunicação, disse que as mudanças e as reformas serão feitas por decreto. “O segredinho sujo é que as pessoas que elegemos para o governo não são as que realmente governam. São os burocratas não eleitos do estado administrativo que foi criado por decreto. Será consertado por decreto”.
As resistências serão, certamente, enormes e as reformas intensamente contestadas na justiça. Imaginem as dezenas de milhares de pessoas que estão agora pensando se se enquadram no “número mínimo de funcionários necessários para um órgão desempenhar suas funções constitucionalmente permissíveis”.
Irão os dois parceiros suportar o tranco? Vivek quer ser presidente e muito de seu projeto dependerá dos resultados que prevê com tanto otimismo. Musk, em muitas áreas, já tem mais poder do que um presidente, mas parece seduzido pelas parcelas que não tem. Donald Trump nunca foi um adepto do corte de gastos, mas sim de regulamentações que, na sua perspectiva de empresário, engessam os negócios que empurram a economia.
Num recém-lançado livro de memórias, Angela Merkel retrata a visão de Trump como a de um empresário imobiliário para quem “os países estavam sempre competindo entre si e o sucesso de um era o fracasso de outro; ele não acreditava que a prosperidade de todos poderia aumentar através da cooperação”.
A ex-primeira-ministra, tão admirada quando estava no poder, está com o prestígio em baixa, com a Alemanha envolvida em problemas atribuídos em parte a ela, incluindo um panorama econômico cinzento e o avanço eleitoral da extrema-direita, movida à imigração em massa que ela incentivou.
PROJETO SEM CHARME
Irá o Trump que ela pinta, avesso à cooperação, aguentar as exigências de um vasto programa de enxugamento e racionalização de gastos? E suportar a competição que Elon Musk inevitavelmente alimenta? Duas figuras com egos tão formidavelmente enormes conseguirão conviver e tocar um projeto sem charme, mesmo que necessário, como o corte de gastos e o enxugamento da máquina?
Leonardo da Vinci (com um QI estimado entre 180 e 220, acreditem ou desconfiem de cálculos a posteriori) , mostrou segurança numa famosa carta a Ludovico Sforza sobre seus visionários projetos de engenharia e arte (“Sei fazer canhões, morteiros e artilharia ligeira de formas muito úteis e bonitas, diferentes das usadas atualmente”).
“Se qualquer coisa mencionada anteriormente parecer a qualquer pessoa impossível e impraticável, ofereço-me prontamente para testá-la em seu parque, ou em qualquer lugar que agrade a Vossa Excelência, a quem eu me coloco à disposição com toda a humildade possível”, propôs.
Ao contrário do gênio renascentista, Elon Musk não depende de patronos e não precisa se colocar diante deles “com toda a humildade possível”. Será um espetáculo interessante ver como se desenvolve sua relação com Trump. O papel sem precedentes que passou a ocupar o colocou na capa das revistas Economist e Times.
“Quando uma coisa é suficientemente importante, tente. Mesmo que o resultado provável seja o fracasso”, é uma das máximas de Elon, que tem um histórico de fracassos transformados em sucessos.
A rapidez com que Matt Gaetz foi obrigado a sair do jogo mostra como o sistema expele elementos insuportáveis e Elon Musk entrou num terreno inteiramente novo – e todo minado.