Obstinada e briguenta, a primeira-ministra Nicola Sturgeon sempre pareceu ser impermeável a fraquezas humanas. Provavelmente, é mesmo. Exceto à mais imperdoável fraqueza dos políticos: uma opinião pública que começa a ter dúvidas.
Popularíssima por ter sempre uma atitude hostil em relação aos ingleses, a ponto de soar insuportável a ouvidos não escoceses, Sturgeon falhou justamente na sua causa mais importante, a da independência.
Segundo a pesquisa mais recente, se houvesse outro plebiscito, 56% dos escoceses votariam contra e 44%, a favor. Foi o menor número já registrado nos últimos anos. A pesquisa saiu num dia, Sturgeon anunciou no outro que deixará o governo assim que for eleita a pessoa que vai liderar o Partido Nacional Escocês em seu lugar. Pelo sistema parlamentarista, esta pessoa se torna o first minister, uma designação que não se distingue, em português, do prime minister, reservado ao chefe do governo britânico.
Mais: apenas 22% apoiam a nova Lei de Reconhecimento de Gênero, uma causa que a primeira-ministra comprou para reafirmar a posição progressista. Pela nova legislação, é suficiente uma pessoa a partir dos 16 anos se declarar do sexo oposto para ter todo o reconhecimento legal. A aplicação desse princípio, na prática, resultou no envio a penitenciárias femininas de condenados por estupro que anunciaram a transição no meio do processo.
Aconteceu assim o notório caso de Isla Bryson que, como Adam Graham, estuprou duas mulheres. Tendo mudado de nome e passado a usar peruca, unhas postiças e roupas femininas, o indivíduo conservou todas as demais características masculinas, transmitindo a forte impressão de que estava apenas se aproveitando do sistema para cumprir a pena nas condições bem menos desagradáveis de uma penitenciária para mulheres.
Falar em características nacionais é um perigo, mas os teimosos e turrões escoceses têm um profundo senso de honestidade, do que é certo e do que é errado. Nicola Sturgeon, que compartilha a legendária cabeça dura nacional, não se deu conta que a lacração funcionaria contra ela. Quando mandou remover os oito homens biológicos colocados em prisões femininas, o estrago já estava feito.
A pessoa que chefia o governo escocês tem autoridade sobre assuntos internos. Quando decisões entram em conflito com o arcabouço legal britânico, podem ser embargadas. Foi o que aconteceu com a lei de gênero. Nicola Sturgeon contava que a questão da autodesignação viraria mais uma prova de que os pérfidos ingleses se metem em tudo e, horror supremo, são transfóbicos.
Recapitulando: a Escócia é um dos quatro componentes do Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte (Inglaterra e País de Gales completam o quarteto). A unificação se deu sob a hegemonia dos ingleses e existem movimentos nacionalistas nos três integrantes que foram dominados pela força quando isso era a coisa mais normal do mundo.
A Escócia, onde é forte o sentimento de que o país é desprezado e maltratado pelo governo britânico, já fez um plebiscito sobre a independência, em 2014. Foi uma campanha livre e, por motivos óbvios, apaixonada: 55% votaram por continuar na união, 44% pela independência (um número quase idêntico ao da última pesquisa).
A causa da vida de Nicola Sturgeon, que começou a militar no PNE aos 16 anos, seria arrancar um novo plebiscito (levou à Suprema Corte o caso da convocação sem a aprovação do Parlamento britânico e perdeu), conseguir a votação do divórcio nacional e declarar a independência. Não foi dessa vez.
Alex Salmond, seu predecessor e ex-mentor (afastado por acusações de assédio sexual das quais acabou absolvido), disse que as “bobagens” da política identitária atrasaram em anos a causa independentista.
O nacionalismo de Sturgeon e companhia é celebrado por progressistas que normalmente abominam o conceito e seus acompanhamentos – bandeira, hino etc – porque o PNE virou um partido de esquerda, com uma longa lista de benefícios sociais e políticas identitárias típicas. A Escócia é frequentemente chamada de “o país mais politicamente correto do mundo”.
Como os catalães, muitos escoceses acham que são explorados pela potência central, mas os números mostram uma realidade diferente: a Escócia gerou 73,8 bilhões de libras em impostos no período de 2021-2022 e recebeu 97,5 bilhões em benefícios.
Como os estereótipos nacionais são irresistíveis, talvez o econômicos escoceses tenham percebido, na maioria, que não seria um bom negócio dar o grito da independência. E Nicola Sturgeon não conseguiu convencê-los do contrário.
“Não estou esperando violinos aqui, mas sou um ser humano tanto quanto uma política”, disse ela, com a voz ligeiramente trêmula.
Só pelo estilo sem autocomiseração dessa frase, merece ser perdoada pelo menos por parte de suas ranzinzices.