Dúvida cruel: é moralmente aceitável ver a Copa do Mundo do Catar?
Ou assiste ou boicota de vez, opções intermediárias como as de cidades francesas que eliminaram as fan zones são hipócritas
A lista de defeitos do Catar, o emirado de apenas 11,5 quilômetros quadrados – equivalente a Tangará da Serra, no Mato Grosso -, é longa.
É um país onde imperam as regras mais ortodoxas da religião muçulmana, inclusive as que proíbem a homossexualidade e sexo fora do casamento. Liberdades individuais, obviamente, não são um conceito local. E ainda tem um desequilíbrio populacional extremo: apenas pouco mais de 300 mil habitantes são catarianos com plenos direitos pelos padrões locais (e um PIB per capita de 50 mil dólares), e 2,3 milhões são trabalhadores estrangeiros.
A situação para as camadas mais modestas destes trabalhadores, atraídos por salários que jamais poderiam ter, geralmente em países muçulmanos mais pobres, já foi pior. Sabendo que o emirado viraria vitrine, as autoridades fizeram um esforço para melhorar isso e gastar sem abusos as centenas de bilhões de dólares que esta Copa está custando. Um exemplo: foi abolida para 95% dos trabalhadores estrangeiros a exigência de visto de saída, o que os deixava à mercê dos empregadores.
Quem já viu as instalações da peãozada em algum dos países do Golfo não fica muito impressionado com isso. Mas também é exagero que os trabalhadores estrangeiros estão sendo massacrados. Os xeques são espertos e antenados, contratam as melhores agências de relações públicas do mundo e procuram se blindar. Querem tornar o pequeno emirado num centro turístico, com condições atraentes para negócios, já pensando na era pós-combustível fóssil.
Como é uma questão ética complicada, sem contar que exigiria tomada de posição em grandes eventos anteriores em países de ficha suja, como a China e a Rússia (antes da guerra da Ucrânia; a montagem de uma máquina oficial de doping dos próprios atletas clamaria por um boicote eterno), alguns países estão procurando alternativas.
Cidades francesas com prefeitos esquerdistas, incluindo Paris, eliminaram as fan zones, as áreas que ajudam os torcedores que não podem viajar – e facilitam muito o trabalho da polícia.
E se a França chegar à final no dia 18 de dezembro?
“Seja como for, não apareceria muita gente em pleno inverno. O público ficará feliz do mesmo jeito vendo o jogo num bar”, desdenhou, em declaração para a BBC, o prefeito de Angoulême, Xavier Bonnefont.
O tempestuoso e agora calvo Eric Cantona disse que não vai nem assistir jogo nenhum, de qualquer lugar que seja, e criticou o ex-colega David Beckham pelo contrato de 10 milhões de dólares para mostrar a carinha sempre bonita como representante oficial dessa Copa.
“No começo, lidamos com a questão de boa fé e até consideramos que algumas críticas eram positivas e úteis para nos ajudar a melhorar aspectos nossos que precisam ser melhorados. Mas estamos sendo alvo de uma campanha sem precedentes”, reclamou o o emir do Catar, Tamin bin Hamad Al Thani. Ele também acha que “a campanha atingiu um nível de ferocidade que levou muitos a questionar quais os verdadeiros motivos por trás dela”.
A verdade é que poucas pessoas simpatizam com os xeques montados em petrodólares que embrulham suas mulheres em panos negros, permitem que trabalhadores estrangeiros sejam, no mínimo, humilhados e viajam ao exterior para fazer aquilo que proíbem em seus países.
Do ponto de vista do emir catariano, ele está fazendo grandes – e talvez perigosas – concessões. Será permitido comprar bebidas alcoólicas em stands em volta dos oito estádios, cada um mais espetacular que o outro, incluindo um debaixo d’água, e em trinta hotéis e restaurantes onde estrangeiros podem tradicionalmente beber, além de fan zones. Drogas, evidentemente, têm punição severa. Salaminho e outros produtos com carne de porco, nem pensar.
O site para a compra do cartão que funciona como visto de entrada, de acesso aos jogos e a meios de transportes informa que não há restrições a que “amigos não casados de gêneros diferentes (incluindo LGBT+)” fiquem no mesmo quarto. É, acreditem, uma grande evolução a ser explorada por quem gosta de viver perigosamente.
Muita gente fala que vai boicotar a Copa, por diferentes motivos, mas na hora que a sua seleção nacional começa a jogar, o coração não aguenta. Para quem toma decisões de última hora, ainda há ingressos. Só não vale ser ingênuo como o espanhol que pretendia ir a pé de Madri até Doha e está desaparecido há três semanas no Irã, possivelmente preso depois de visitar o túmulo da jovem Mahsa Amini, cuja morte sob custódia policial desencadeou a atual onda de protestos.
O Catar tem posições próprias, já se aproximou do Irã dos aiatolás – abominado por outros países árabes – e mantém uma emissora de televisão altamente competente como a Al Jazira, alinhada em geral com posições esquerdistas, uma combinação bizarra numa monarquia absolutista.
Alguém vai pensar nisso quando a seleção brasileira ganhar um jogo?