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Desafio: é de esquerda ou de direita?

Farmacêuticas e até mesmo Harry Potter mudaram de lado

Por Vilma Gryzinski Atualizado em 4 jun 2024, 12h44 - Publicado em 5 fev 2022, 08h00
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  • Ter uma única chave para explicar o mundo é um jeito garantido de aprisionarmos a nós mesmos em jaulas ideológicas. E também de levarmos grandes sustos. Ideias de esquerda que viraram de direita são um exemplo do nó mental que os simplificadores da realidade podem sofrer. Um caso muito presente em nossa vida é o das grandes farmacêuticas que desenvolveram vacinas contra a Covid-19. De vilãs do universo esquerdista, elas se transformaram em avatares da Ciência, com maiúscula, na sua forma mais pura. Na época da vilania, foram retratadas por John le Carré em O Jardineiro Fiel, depois filme de Fernando Meirelles, como as mais selvagens encarnações do capitalismo, capazes de usar crianças africanas como cobaias para um novo medicamento. Quem se revolta hoje com o poder das farmacêuticas são os militantes antivacinação, uma tribo da direita populista que tende a acreditar nas mais exóticas teorias conspiratórias. A Big Pharma, que já encontrou soluções para muitas das aflições da humanidade usando como motor a busca da recompensa material, virou a inimiga atual da direita pura e dura.

    “Quem se insurge hoje contra restrições e censuras são intelectuais conservadores”

    Outra extraordinária mudança de campo: a defesa da liberdade de expressão. Uma das mais tradicionais bandeiras progressistas, ancorada em campanhas históricas pela publicação de escritores proibidos, ela foi entregue de bandeja para a direita. Quem se insurge hoje contra restrições e censuras, praticadas em nome da eliminação de ofensas reais ou imaginárias, são intelectuais conservadores. A esquerda apoia a demonização até de uma escritora como J. K. Rowling, a criadora de Harry Potter, pelo crime de ter achado que mulheres biológicas têm uma realidade irreproduzível. A escritora, que passou a vida apoiando causas de esquerda e colocou dezenas de milhões de libras em obras filantrópicas, praticamente só tem defensores no lado conservador.

    A pressão brutal de Vladimir Putin sobre a Ucrânia, com a intenção de reconstruir a esfera de influência do império russo, é outro caso quase inacreditável de guinada ideológica. A direita populista, que já tinha uma queda por Putin pelo estilo dominante e a defesa de valores tradicionais, parece ter se tornado porta-voz do Kremlin. Tucker Carlson, o influentíssimo apresentador da Fox, detona a causa ucraniana com mais eficiência do que qualquer profissional de agitação e propaganda. Essa versão invertida baixou, estrepitosamente, no Palácio do Planalto. O que faz a esquerda que sempre se encantou com o antiamericanismo de Putin? Arranca os cabelos com os novos aliados? Finge que não existem?

    Para quem não gosta de explicações simplistas, melhor é voltar a ler A Garota do Tambor, o livro em que Le Carré testa até o limite simpatias e antipatias numa das questões mais complicadas do planeta, o conflito entre Israel e palestinos. O próprio escritor foi ficando esquerdista com a idade, num movimento oposto ao convencional. O Jardineiro Fiel é dessa fase. Não é a melhor.

    Publicado em VEJA de 9 de fevereiro de 2022, edição nº 2775

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