Num país onde motoristas de caminhão estão ganhando mais do que advogados e arquitetos (melhor oferta: 53 mil libras por ano, equivalente a mais de sete vezes em reais, salário generoso para contrabalançar as quebras na cadeia de abastecimento), não deveria causar estranheza que um chefe de governo do Partido Conservador, intrinsecamente contra os excessos do Estado, inclusive fiscais, soltasse um pacotão que aumenta as contribuições sociais de patrões e empregados.
Fora as reclamações de conservadores raiz, exasperados com mais uma manifestação de heterodoxia doutrinária de Boris Johnson, o aumento de 1,25% até que foi recebido com resignação.
Um dos argumentos: ninguém espera mais que o primeiro-ministro seja fiel a princípios ou cumpra promessas pétreas, como a de não aumentar impostos. (“Uma pandemia não constava com programa do partido”, justificou ele).
O objetivo, como sempre, é nobre: reforçar o caixa que sustenta os cuidados domiciliares para idosos incapacitados e ajudar o NHS, o SUS britânico, a desafogar a demanda por atendimento que aumentou dramaticamente durante a pandemia por causa do direcionamento de recursos à Covid-19. Sem a verba extra, a lista de espera chegaria a treze milhões de pessoas, argumentou Boris.
Glorificado, erroneamente, como um excelente serviço de saúde pública, o NHS hoje praticamente reduz as primeiras consultas a contatos por telefone — o oposto do que um bom atendimento deveria ser.
Ao todo, o pacotão, o maior desde o fim da Segunda Guerra Mundial, deve gerar 12 bilhões de libras. O aumento é escalonado, vai de 130 libras a mais por ano para quem ganha até 20 mil libras, a 1 130 extras no caso dos salários acima de 100 mil libras. Os dividendos pagos por empresas aos sócios também terão alíquotas aumentadas.
Os aposentados que continuam a trabalhar também terão que pagar a contribuição social pela primeira vez. Um milhão e 300 mil pessoas continuam a trabalhar depois de atingir os 66 anos, a idade da aposentadoria.
Pessoas que precisam de atendimento domiciliar e recebem abaixo de 20 mil libras por ano, não pagarão pelos cuidados. Na faixa que vai até 100 mil libras, a cobertura será parcial. Ao todo, ninguém deverá pagar mais do que 86 mil libras pelos cuidados sociais.
Muito desse pacote pode ser chamado de “taxa Alzheimer”, ou seja, pretende reforçar os recursos para atender idosos atingidos por demências da senilidade.
Não ficar desamparado justamente quando mais se necessita é uma preocupação recorrente, principalmente em países avançados com uma grande população velha. Boris Johnson sabe disso e certamente comemorou a aprovação de 47% da opinião pública ao pacote, contra 43% desfavoráveis.
O primeiro-ministro virou uma espécie de profeta descabelado do “novo conservadorismo” — uma versão com sinal invertido do “novo trabalhismo”, defendido por Tony Blair na época em que se tornou a estrela da terceira via, a adaptação de partidos social-democratas e socialistas às realidades da economia globalizada.
Faz parte desse novo conservadorismo não ter medo de gastar dinheiro (dos outros, claro) e abraçar a causa ambiental com entusiasmo. Boris já reduziu para 2030 o prazo final para o fim dos carros movidos a combustíveis fósseis. Seu plano para neutralizar as emissões de gás carbônico vai custar tão caro que os conservadores nem querem falar no assunto.
Até na infeliz e malfadada formação de uma superliga europeia de futebol, que solaparia a tradição dos clubes locais, ele já interferiu, ao contrário do que recomendaria o manual conservador.
Ter jogo de cintura e se adaptar a novas circunstâncias — como uma pandemia ou uma intrusão alienígena no mundo do futebol — pode ser visto de dois ângulos opostos: falta de compromisso com princípios que deveriam ser imutáveis ou capacidade de visão para enfrentar realidades cambiantes.
Em qual das categorias se enquadra Boris Johnson? Provavelmente nas duas.
Em ambas as hipóteses, merece ser relembrada uma constatação de Benjamin Disraeli, o formidável primeiro-ministro que foi um dos fundadores do Partido Conservador, em 1834, sobre as bases do Partido Tory, como até hoje é conhecido.
Disse Disraeli: “O mundo é governado por personagens muito diferentes do que imaginam aqueles que não estão nos bastidores”.
O Boris dos bastidores talvez não seja tão diferente do Boris performático dos compromissos públicos, embora e encenação que faz de um bufão simpático e dedicado a restaurar o otimismo nacional — tarefa nada simples num ex-império inevitavelmente amarrado ao peso do passado — deixe muita gente desconfiada.
Ser um conservador progressista, ou até, livrem-no os céus, algo keynesiano, é até fácil para um personagem assim.